visão geral

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral

113 – Helena – uma sofística do gozo.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

113 – Helena – uma sofística do gozo.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Ainda Helena: uma sofística do gozo

 

"Esfalfei-me, durante essas pseudoférias, com o Sofista. Devo ser bastante sofista, provavelmente, para que isso me interesse" J. Lacan, Congresso de Roma, 1-11-74 (Lettres de l'E.F.P.. n. 16).

Conta-se às vezes que Górgias o siciliano, enviado em embaixada a Atenas por sua cidade natal, Leôncio, conseguiu não apenas obter ajuda contra Siracusa, mas maravilhar os atenienses com seu discurso desconcertante; persuadiu a agora um dia de que Helena era a mais culpada das mulheres e, no dia seguinte, de que Helena era a própria inocência. Essa história, nem verdadeira nem falsa, é plena de sentido, quanto a Helena e quanto à sofística, talvez quanto à psicanálise.

A personagem de Helena, em primeiro lugar, tal como foi elaborada por uma tradição ininterrupta que vai de Homero, Górgias, Eurípedes e Isócrates até Goethe, Hofmannsthal (libretista de Strauss), Offenbach, Claudel ou Giraudoux, é a meu ver um paradigma do objeto de odioamoração. Ele "nos incita à lembrança de que não se conhece amor sem ódio" (Encore, p, 84, [Osório diz: de Lacan]). Com efeito, Helena parece não, por um lado, um objeto de amor e por outro lado, para outros ou por outras razões, um objeto de ódio, mas — como a língua com a qual, nós o veremos, não deixa de se relacionar — indissoluvelmente a melhor e a pior das coisas, o objeto-de-ódio-e-de-amor: quanto mais Helena é culpada, acusada, odiada, mais Helena é inocente, louvada, amada.

Em seguida Helena, que tornou Górgias célebre, é uma heroína sofística. Seu nome, onde se enlaçam os temas do amor e da linguagem, parece-me poder servir de emblema para uma posição sofística do discurso, por contraste com uma posição filosófica ou ontológica. Ora, em Encore, onde se trata também de amor (não: de odioamoração e de gozo) e de discurso, Lacan se explica por meio da filosofia, especialmente Parmênides e Aristóteles, e esboça para a psicanálise, exatamente face à filosofia, um lugar análogo ao que ocupa a sofística, um estatuto de discurso igualmente heterodoxo: ele fala, poder-se-ia dizer, como sofista.

 

Helena Odiamada

 

"Muito louvada e muito acusada, eu Helena", assim ela apresenta a si mesma no Segundo Fausto (8488). Sua história é entretanto bem banal, um mexerico de alcova: ela enganou seu marido, abandonou-o para seguir seu amante. Nada de que acusá-la e nada de que, certamente, felicitá-la. É verdade que os deuses, ou antes as deusas, se imiscuíram no início (o concurso de beleza, o pastor, a maçã: a mais bela das mulheres, prêmio da escolha de Afrodite, é de início apenas a gorjeta de Páris [Osório diz: o primeiro caso de corrupção registrado]) e que os gregos entraram no jogo em seguida, obstinando-se em morrer diante de Tróia — é a Ilíada e se daí voltam, encontram suas terras sem cultivo e seu leito tomado — é a Odisseia. Então: culpada ou não culpada, malfeitora ou benfeitora? O mais notável é que seja imperativo, no caso de Helena, manter os dois discursos ao mesmo tempo e que não haja um só fato, um só argumento, que não se deixe duplicar em seu contrário.

Não, não podemos nos aborrecer com os troianos nem com os aqueus de belas grevas se por uma tal mulher sofrem tão longos males. Ela se assemelha terrivelmente, quando olhamos seu rosto, às deusas imortais. Mas, malgrado tudo, tal como ela é, quer ela embarque ou que ela parta, que não a deixemos aqui como flagelo para nós e nossos filhos mais tarde. (Ilíada, III, 154-160).

 

E esse rosto de deusa que os anos não alteram não cessará mais de ser, para a própria Helena, uma" face de cadela"4.

Mas é o sofista Górgias e Isócrates, o orador inclassificável, que fazem verdadeiramente entender a que ponto a inocência de Helena não é nada além de sua própria culpabilidade e que enquanto benfeitora ela é calamidade. Em seu Elogio, Górgias considera quatro casos: Helena é inocente "certamente, sê "ela fez o que fez", pelos desígnios da fortuna, as vontades dos deuses e os decretos da Necessidade — "a Fatalidade", dirá ela por volta de 1900 —; inocente ainda "se ela foi raptada por violência". Admitamos, então, que a mulher seja impotente face ao destino e diante da força viril. Mas Górgias acrescenta que ela é inocente se, terceira hipótese, foi persuadida por palavras, ou se, quarto caso, simplesmente ela amou. Como seu erro mesmo se deixar seduzir, ceder ao destino — poderia inocentá-la? É simplesmente porque Helena não pode fazer nada se tem ouvidos e olhos. Seus ouvidos ouviram os discursos de Paris, ora "o discurso é um grande mestre, que perfaz, com o mais minúsculo e o mais imperceptível dos corpos, os atos mais divinos"(8): Helena faz apenas parte das “inumeráveis pessoas que sobre inumeráveis assuntos foram e são persuadidas por inumeráveis fabricantes de um discurso de aparência”(11). E, não mais responsável pelo que ouviu, é ela responsável pelo que viu, pois "o que vemos tem uma natureza que não é a que nós queremos, mas a que ele mesmo tem"(15); ora, o belo Páris apresentou-se a seus olhos: "se o olho de Helena pelo corpo de Alexandre [Outro nome de Páris] deu o desejo e transmitiu à alma a avidez do amor, o que há aí de surpreendente?"(19). De todas essas formas, Helena é inocente de ter esse corpo que a faz culpada.

Independentemente das artes, dos estudos filosóficos e de outras vantagens que podemos fazer remontar até ela e até a guerra de Tróia, podemos pensar com razão que ela é causa do fato de que não nos tenhamos tornado escravos dos bárbaros. Vemos os gregos se unir, graças a ela, em um mesmo sentimento, constituir um exército comum contra os bárbaros e a Europa pela primeira vez erguer então um troféu de vitória sobre a Ásia.

Foi assim, traindo Esparta pelos belos olhos de um bárbaro, que Helena fez a Grécia, dando-lhe essa homónoia, "consenso" e “concórdia” necessárias a toda consistência política.

 

A sombra e o nome

 

Helena é a tal ponto dupla que se quis acreditar desde Este-su-orv que houvesse duas Helenas A primeira é Helena ae corpo r alma, a esposa muito fiel de Menelau, que jamais entrou em l mia mas que Hermes transportou sobre uma margem do Egito cuide a proteção do rei — que certamente não podia evitar de lhe propor um casamento regular após uma viuve/ decente — lho permitiu conservar sua virtude: Helena a egípcia, a de Eurípedes, depois de Hofmannsthal e de Claudel. A segunda é a Helena de Tróia, um "simulacro animado" (eídolon, Eurípedes. Helena, 34, 683), feito de um pouco de “vento”, de "sopro" ou de "céu", "um funesto ágalma [Osório diz: adorno, enfeite, ornato] feito de nuvem" (705), que foi arrebatado por Páris e partilhou seu leito, por quem sozinhos gregos e troianos se mataram, que Menelau após dez anos de assédio conseguiu reconquistar e que uma bela manhã “se dissipou” no éter (605-606).

 

Ouvir em Helena todas as mulheres

 

Helena nomeia então esse desdobramento da coisa e do nome que dá ao nome uma realidade mais tenaz e mais eficaz que a da coisa: a própria mola do nominalismo — digam o nome e terão a coisa, mais coisa do que a coisa. Mas pode-se ir mais longe. Helena encarna a onipotência do discurso e, no discurso, a onipotência dos sons da voz, da phone puramente sensível, audível, em sua diferença com o sentido trazido pelas palavras ligadas a uma referência preexistente e sintaticamente agenciadas.

 

colchetes que são a guilhotina filológica...

 

Ulisses, perito em astúcia e em discursos, ...

 

A voz de Helena tem todo o poder sobre os guerreiros não iipi-iiiis porque ela os atinge no âmago de sua singularidade, no-iiR-aiulo-os, mas também porque, enquanto som, sabe fazer ser o que não é. O som, "o mais imperceptível dos corpos" de que falava Górgias no Elogio, é o que há de mais demiúrgico no discurso, o que tem verdadeiramente efeito, eficácia, o que produz a ficção ou, segundo a muito criteriosa ortografia lacaniana, a . "fixão". Helena é o equivalente geral de todas as mulheres, assim como o discurso é o equivalente geral de todas as coisas; [Osóio diz: mas não é a coisa! Se não é a coisa não é a verdade!].

(…)

 

O sofisma do gozo

 

Helena é assim um objeto que informa profundamente sobre o objeto: que é um efeito, um perdido (rate), uma aparência. É esse tipo de constituição da objetividade que me parece ligar rigorosamente sofística e análise, em todo caso lacaniana.

 

O preço do phármakon

 

Da sofística à psicanálise, a semelhança exterior é por demais impressionante. O mais escandaloso, aos olhos da filosofia como da opinião pública, é que sofistas ou psicanalistas vendem, e sempre caro demais, seu savoir-faire discursivo.

 

Eles comerciam, como as "putas" a quem os compara Aristófanes, o que não deveria sê-lo e que, em sendo-o, se torna completamente diferente, não mais sabedoria e saber, mas habilidades e oportunismos.

 

O pagamento e a eficácia se garantem um ao outro e garantem que não se trata de dizer a verdade, impagável em todos os sentidos do termo, nem de fazer passar o outro de uma opinião falsa a uma opinião verdadeira, pois, como diz Protágoras pela boca de Sócrates que faz sua apologia, isso não é "nem para ser feito, nem exequível". Mas se trata de substituir "um estado menos bom por um estado melhor" (Teeteto; 166e-167a), de modo que falar, — e atualmente, ainda mais forte: calar-se apresenta-se explicitamente como o análogo de uma prática médica: esse tipo de discurso tem o estatuto de um phármakon, remédio ou veneno; sua eficácia é estritamente ad hominem; ele só poderia funcionar apreendendo o kairós, essa "ocasião" tão careca por detrás, e ele trabalhou mesmo, historicamente, de Ântifon a Élio Aristides, para decifrar essa ocasião propícia, praticando a interpretação dos sonhos.

 

A tolice do discurso m'être*

 

A pista terapêutica e mundana parece-me remeter a uma posição, digamos teórica, que a leitura de Encore permite explicitar. “De um modo geral, escreve Lacan, a linguagem se revela ser um campo muito mais rico de recursos do que o de ser simplesmente aquele em que se inscreveu, ao longo do tempo, o discurso filosófico" (Encore, 33). Só por uma vez trata-se de “passar alguma coisa para a metafísica” ao invés de "comer em sua manjedoura" (p. 56). Qual é esse mais? Benveniste o enuncia com a maior simplicidade: estamos em uma "linguagem que age tanto quanto exprime" ("Remarques sur la fonction du langage dans la découverte freudienne", in Problèmes de linguistique géneral,77). Não apenas a linguagem "exprime": diz o que vejo, diz o que é (fenomenologia, ontologia), mas ela "age": é capaz, como bom phármakon, de transformar o outro ou eu mesmo e é capaz também, como a personagem e o estratagema de Helena nos fizeram compreender, de criar, de produzir um efeito-mundo.

 

*Literalmente "me ser". A expressão francesa remete à palavra homófona maítre. Em sua múltipla acepção (mestre, dono, patrão) compreendida nas oposições mestre/escravo, mestre/discípulo, dono/objeto possuído, patrão/empregado. (N. das T.)

 

15. A formulação parmenidiana, poética, das duas vias de pensamento é: "Uma que é e que não é (possível de) não ser... A outra que não é e que é necessário que não seja" (28 B2 D.K.);

A segunda é a identidade ou o co-pertencimento do ser e do pensado: "penso, logo existo... É mesmo melhor do que o que diz Parmênides. A opacidade da conjunção do noeîn e do einai, daí não sai o pobre Platão" (Roma, 546). E a propósito de Aristóteles; "Seu erro é implicar que o pensado é à imagem do pensamento, quer dizer, que o ser pensa" (Encore, 96). Essas duas teses juntas fazem com que seja impossível dizer e pensar o que não é e a ontologia se autodefine aí como o dizer do que é; ela aparece assim simplesmente como uma petição de princípio: "O discurso do ser supõe que o ser seja e é isso que o mantém" (Encore, 108).

Esse é exatamente, exceto a denegação do agrado em dizê-lo, o ponto de partida do Tratado do não-ser de Górgias. Górgias mostra aí que a ontologia de Parmênides, quando aplicamos a ela mesma seus próprios princípios, que se tornarão os da identidade e da não-contradição, produz sua própria reversão. Por exemplo, se não se pode dizer nem pensar o que não é, então basta que eu diga e que pense que "carros combatem em pleno mar para que carros, efetivamente, combatam em pleno mar" (9). Apenas a ontologia funda o lugar comum sofístico da impossibilidade da mentira e do falso. A ontologia age como se o ser que ela tivesse que dizer já estivesse presente e assim não tem mais que se preocupar, a não ser com a adequação. Górgias faz compreender que ela só pode manter sua posição e ocupar assim toda a cena porque esquece, não o ser, mas que ela mesma é um discurso. [Osório diz: trecho muito bom, pois explica muito bem Górgias e a impossibilidade do falso]

 

O ser é um fato de dito

 

Face à ontologia, a tese sofística e a tese lacaniana são apenas uma: o ser é um "efeito de dizer", "um fato de dito" (Encore, 107). É exatamente sobre esse ponto, nesse posicionamento, que Lacan me parece dever ser chamado sofista. Bem entendido, os sofistas, à diferença de Lacan, foram bem mais exclusivamente práticos, pedagogos e oradores, não deixando reflexões sobre a sua prática. Por outro lado, já se percebeu isso, é sempre também com pesar que Lacan constata que não é parmenideano, platônico, aristotélico, heideggeriano, filósofo. Enfim, é evidente, Lacan dispõe de outros conceitos, em particular os da subjetividade e os da linguística. Mas se os dois mundos são, apesar de tudo, comparáveis, é exatamente e para resumir, porque os sofistas e Lacan têm o mesmo outro, o regime filosófico “normal” do discurso. Indiquemos simplesmente que a definição mais adequada desse regime normal deve ser construída a partir o libro Gama da Metafísica de Aristóteles, onde a demonstração do princípio de não-contradição só se sustenta pela confusão expressar entre "dizer" e "significar alguma coisa que tenha o mesmo sentido para si mesmo e para outrem". Essa identificação é explicitamente elaborada por Aristóteles como um contragolpe à sofística. É então menos plausível que um regime antearistotélico e um regime pós-aristotélico como a psicanálise possam se comunicar em seu não, e mesmo seu anti, aristotelismo.

 

Para explicitar essa posição que se pode nomear, com um termo de Novalis, "logológica", tentarei colocar lado a lado citação lacaniana supostamente mais familiar ao leitor analista e citação sofística.

 

O ser é um fato de dito: isso significa simplesmente que não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso" (Encore, 33). É preciso inverter o sentido do sentido, que não vai do ser ao dizer, mas do dizer ao ser, ou, nos termos do Tratado do não-ser de Górgias: "Não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que vem revelar o discurso" (Sextus Empiricus, Adv. Math., VII, 85). Assim, "a realidade", "o exterior", em uma palavra o ser, longe de ser anterior, se conforma, sempre posteriormente, ao discurso que efetuou sua predição, e tem sua existência, assim como Helena, essa concreção fetichizada de sopro, apenas por ter sido discursado. [Osório diz: texto maravilhoso. O ser como efeito do dizer!]

 

Segue-se uma série de proposições negativas, que guarnecem de ingenuidade os discursos científicos tradicionais. Por exemplo, a "cosmologia": "será que não há no discurso analítico como nos introduzir ao fato de que toda subsistência, toda persistência do mundo como tal deve ser abandonada" (Encore, 43); a "física": "em que essa nova ciência concerne ao real?" (Encore, 96) e, no mesmo saco aristotélico, o "behaviorismo" (p. 96); enfim, a "história" que se pode extrapolar de "história do cristianismo", onde "não há um só fato que não possa ser contestado" e onde toda a verdade é a de ser "dito-menção (dit-mention), a menção do dito" (p, 97): em suma, para minorizar a verdade como ela o merece, é preciso ter entrado no "discurso analítico" (p. 96). Essa série de negações culmina na fórmula: "não há linguagem do ser" e Lacan pode enfim desativar a proposição ontológica fundamental, guarnecendo-a com um índice de enunciação, característico do procedimento doxográfico: "o ser é, como se diz, e o não-ser não é". Concluir-se-á sobre a potência da própria logologia: "Distingo-me da linguagem do ser. Isso implica que possa haver aí ficção de palavra. Quero dizer a partir da palavra" (p. 107).

 

Essas poucas citações poderiam também servir para descrever a heterodoxia sofística através da série de recusas que a constituíram. O sofista se ocupa do não-ser; pretende saber tudo — conhece melhor o mundo, a natureza, a história do que os próprios especialistas; enfim, não se preocupa com a verdade, mas seu domínio é o pseûdos, a mentira, o falso, a ficção. Aqui seria necessário, para agir corretamente, incluir no dossiê todo Platão e muito de Aristóteles. Mas também, para poder perceber a eficácia dessa logologia assim determinada como que em negativo, seria preciso, positivamente dessa vez, considerar todo um conjunto de doutrinas e de práticas que só tomam, parece-me, todo seu sentido, nessa perspectiva. Assim, essa outra física, perfeitamente escandalosa aos olhos de Aristóteles, que foi o atomismo e que deveria ser interpretada, com seu modelo da letra, como uma "colocação em mundo" do discurso; em seguida a própria história que, através de Heródoto e Tucídides, se apresentou em primeiro lugar não como a descrição da realidade passada, mas como uma reunião de opiniões e de discursos; enfim, muito mais tarde, a ficção romanesca, tal como foi elaborada, após o triunfo da educação retórica, no momento da segunda sofística. Tudo isso só poderia estar aqui apenas sugerido.

 

O significado é o efeito do significante

 

Que o ser seja um fato de dito convida a tomar precauções no que concerne à significação. A precaução elementar que levaria a refletir sobre a especificidade do escritor é, sem dúvida, a de "distinguir a dimensão do significante". "Distinguir a dimensão do significante só tem importância por formular que, aquilo que vocês ouvem, no sentido auditivo do termo, não tem nenhuma relação com o que isso significa" (Encore, 31). E assim como a logologia não procede do ser ao dizer mas do dizer ao ser, não se irá do significado ao significante, mas inversamente: “o significado não é o que se ouve. O que se ouve é o significante. O significado é o efeito do significante” (p. 34).

 

Os sofistas não utilizaram, como os estóicos, esse tipo de terminologia. Por outro lado, é manifesto que sua crítica da ontologia se apoia na autonomia de um discurso definido como som, em termos de ouvir e de escutar — a voz de Helena:

 

Da mesma forma que a vista não conhece os sons da voz, o ouvido não ouve cores mas sons, e aquele que diz diz mas não uma cor nem uma coisa... Pois, para começar, ele não diz uma cor, mas um dizer. De modo que não existe nem conceber nem ver cor, não há mais do que ruído, há apenas ouvir (Tratado do não-ser, 10).

 

A psicanálise, como a sofística, faz soar o significante, é por isso que Lacan lacaniza e Górgias, seus contemporâneos diziam com não menos odioamoração, "gorgianiza". Com efeito, o grande recurso do significante é o de baralhar a certeza do sentido — desde Aristóteles, sentido único, "o um sentido" — jogando com o equívoco: "A interpretação... não é interpretação de sentido, mas jogo com o equívoco. É por isso que coloquei ênfase sobre o significante na língua (Roma, 552). Poder-se-ia reler, para censurar L'Etourdit, as Refutações sofísticas de Aristóteles onde, após ter deplorado o pecado original da língua há menos palavras do que coisas e falamos, em suma, como com as pedrinhas utilizadas para fazer cálculos —, ele acua o equívoco característico dos sofismas. Os sofismas que dizem respeito a confusões no pensamento são fáceis de refutar, utilizando as características ontológicas, lógicas e físicas para definir; mas contra os que dizem respeito apenas à elocução (léxis), por exemplo, ao acento, ao encadeamento e à divisão das sílabas e das palavras, à cadência da voz, logo, aos puros jogos de significante, Aristóteles pode fazer apenas um simples retorno ao emissor e um banimento para, exatamente, a insignificância. Insignificância que entretanto o chiste sabe bem tornar falante.

 

Compreendamos a que ponto todas essas teses estão ligadas. A ficção da palavra assinala a ruptura com a filosofia ("Como vos tirar dá cabeça o emprego filosófico de meus termos, quer dizer, o emprego sujo?" Roma, 544

 

Para o prazer/em pura perda

 

É preciso refletir ainda sobre a ficção de palavra, creio, para levantar um último problema: o da ética. Lacan o assinala em Encore: "A ficção a partir da palavra... foi daí que parti quando falei da ética" (p. 107). Em sua intervenção de Roma, ele esboça uma bipartição entre a posição que se deve, em virtude de seu próprio nome, qualificar de filosoficamente moral: a do Da-Sein, que ele mesmo ocupava então; e a do analisando, que se define por ter a dizer seja o que for: "Ele se regozija com alguma coisa... porque tudo indica, tudo deve mesmo lhes indicar que vocês não lhe pedem de forma alguma apenas para "daisenar", para estar aí como eu estou agora, mas antes e bem ao contrário, para experimentar essa liberdade de ficção de dizer seja o que for" (p. 558). De um lado então o "o ser aí", "o aí do ser", seu "pastor", o homem de Parmênides a Heidegger via Aristóteles; do outro, o discurso puro, embriagado, "hibrístico", sobre o qual Aristóteles não sabe se ele caracteriza uma planta (aliás: que faz exatamente o lírio do campo? se pergunta Lacan, 556), ou bem um deus, mas que em todo caso bane o sofista, e seria necessário acrescentar, o analisando, fora da comunidade filosófico-humana [Osório diz: mas ele pertence a essa comunidade! Falta recurso para caracterizá-lo? Classificá-lo?]. Por não poder descrever aqui a Metafísica de Aristóteles, contentar-me-ei em citar a condenação de Heidegger quando comenta "o princípio de contradição [Osório diz: “o ser é, o não-ser não é” - Parmênides. “O ser não pode ser e não ser - Aristóteles] enquanto princípio do ser": "Ao sabor de afirmações contraditórias que o homem é capaz de de produzir à vontade sobre uma só e mesma coisa, ele mesmo sai de sua própria essência para entrar na não-essência: rompe toda relação com o ente enquanto tal"' (Nietzsche, l, 468, trad. Klossowski). Aí se vê o motivo das reticências de Lucan que, por ser analisando, não é por isso menos homem. Mas não se poderia duvidar que ele tome mais frequentemente o partido de "alíngua onde o gozo se deposita" 556) e não participe por esse fato da presunção dos primeiros sofistas: "Gabo-me por ser capaz de fazer, em uma frase, qualquer palavra dizer qualquer sentido" (p. 55). Mais uma vez com o remorso que faz com que, gozando, não se tenha o coração alegre:

 

Tenho a impressão de que a linguagem é verdadeiramente o que só pode avançar torcendo-se e enrolando-se, deformando-se de um modo do qual não posso dizer que eu não dê aqui o exemplo. Não se deve acreditar que, para aceitar seu desafio, para marcar em tudo que nos concerne a que ponto dependemos dela, não se deve acreditar que eu faça isso com muita alegria no coração. Preferia que isso fosse menos tortuoso (p. 560). (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 293299, 302-308).

 

14

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral