Sofística
(uma biografia do conhecimento)
52.2 – Teoria política, por Licofronte.
Doutrina Gilbert Romeyer-Dherbey:
“Lícofron intrometeu-se também no grande debate sobre as relações entre nomos e physis, entre a lei e a natureza. Como Antífon e Hípias e, sem dúvida, porque põe em questão o caráter restrito da polis, tira à lei todo o caráter sagrado, todo o valor ético. Ela é uma criação puramente humana, uma convenção; não tem, pois, algum fundamento na natureza. A sua legitimidade encontra-se na mera utilidade que dela extraem os cidadãos, enquanto ela é “garante dos direitos recíprocos”. Lícofron, para melhor traduzir o seu pensamento, usava uma metáfora e dizia que a comunidade política (koinonía) era parecida a uma aliança: assim como os estados fazem alianças para se ajudarem, se for necessário, também cada cidadão faz aliança com todos em vista a uma ajuda mútua. Encontramo-nos perante uma concepção puramente pragmática das relações sociais.
Qual é, em rigor, o significado desta teoria? Karl Popper nega-se a falar, a seu propósito, de contrato social sob o pretexto de que não se apresenta “sob uma forma historicista”. É verdade que a concepção histórica moderna é estranha ao mundo grego, mas, apesar de tudo, há em Lícofron uma teoria contratual da comunidade na medida em que esta não é espontânea (natural) e tem a sua origem num pacto de aliança (lei convencional). O pressuposto da teoria é a afirmação do individualismo, o que não é para espantar num sofista. O indivíduo existe por natureza, a Cidade é uma construção. Esta construção não tem senão o alcance limitado de uma aliança, limitada no tempo, limitada pela condição de aliança. Isto explica que a lei não atinja verdadeiramente a natureza profunda do homem e que seja impotente para a modificar: “não é capaz de tornar bons e justos os cidadãos”. A política não pode, portanto, coroar a esperança que Platão nela virá a pôr: caminhar de mãos dadas com a moral, o governante íntegro elaborando leis boas, as leis boas formando governados íntegros. Esta ineficácia ética das leis não impede, no entanto, de se resolver o problema político: basta que o cidadão esclarecido se aperceba de que há interesse em respeitar, pelo menos exteriormente, o direito. Pensamos em Kant, que dirá, mais tarde, que o problema político tem solução até no seio de uma comunidade de demônios, contanto que tenham senso comum.
A natureza cria, portanto, não cidadãos, mas indivíduos. Estes indivíduos naturais são todos iguais e, por conseguinte, a nobreza (que se chama impropriamente “nascimento”) não é mais do que um efeito de sociedade e, como esta, uma pura convenção. Se a convenção social se justifica pelo utilitarismo, a nobreza não o consegue e, então, não é mais do que uma “noção completamente vazia” porque “em verdade, nada distingue os não-nobres dos nobres”. No seu escrito perdido Da nobreza, Aristóteles cita literalmente Lícofron, dando-nos assim, uma amostra preciosa da sua maneira de escrever: “Invisível a beleza da nobreza, a sua majestade reside só nas palavras”. A posição política de Lícofron está, com isto, fixada: é um adepto da democracia, pelo menos um adversário dos oligarcas. Neste sentido, integra-se perfeitamente na corrente sofística tal como nos aparece.
Através destes raros e curtos fragmentos, adivinha-se a estatura de um pensador imponente, que nos fala do fundo de um injusto esquecimento.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 55-57).