Sofística
(uma biografia do conhecimento)
49.6 – Antropologia sofística, por Crítias.
Expõe Gilbert Romeyer-Dherbey:
“A chave do pensamento de Crítias encontra-se, talvez, no fragmento que pareceu, a muitos intérpretes, paradoxal: “os bons são-no muito mais pelo exercício do que por natureza”. Com efeito, pensa-se, geralmente, em referência a Píndaro, que um aristocrata só podia fazer depender a areté da natureza, isto é, do nascimento. Parece-nos, pelo contrário, que, neste fragmento, Crítias responde a Antífon, para o qual a natureza mostra a igualdade dos homens: se os homens são iguais por natureza, diferem enormemente pela cultura. O que distingue a aristocracia é a longa e difícil formação educativa que se lhe dá e que ela a si se dá. Esta tese orienta o pensamento de Crítias para um voluntarismo que vai confirmar a sua gnoseologia. Crítias traça uma linha de demarcação nítida entre o sentir e o conhecer; para isso opõe o pensamento – que conhece – e as diferentes instâncias corporais – que sentem. Pensamento e (p. 111) sensações opõem-se como a unidade à multiplicidade. Um outro fragmento permite-nos relacionar o primeiro tema da ascese [Osório diz: Ascetismo. Prática de devoção e meditação religiosa (consiste na prática da renúncia do prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, com o fim de atingir determinados fins espirituais. O conceito abrange, por isso, um grande espectro de práticas, em culturas e etnias muito diferentes, que vão dos ritos iniciáticos (maus tratos, incisições e escoriações no corpo, repreensões de extrema severidade, a mutilação genital ou a participação em provas que exigem atos excessivos de coragem) aos hábitos monásticos de diversas religiões, incluindo o celibato, o jejum e a mortificação do corpo por diversos meios. Segundo as interpretações mais correntes, alguns dos fenômenos religiosos e místicos, envolvendo visões ou estados de êxtase resultam do enfraquecimento do corpo e da alteração do equilíbrio sensorial. Segundo o idealismo platônico, a ascese servirá, exatamente, para aproximar a pessoa (o asceta) da verdadeira realidade espiritual e ideal, ao desligar-se da imperfeição e materialidade do corpo. A religião cristã ligará, também, os desejos corporais à ideia de pecado que deve ser refreado a todo o custo, caso se pretenda atingir a santidade e os dons divinos que, ainda assim, são concedidos pela graça de Deus e não pela virtude do asceta.)] com a teoria do pensamento:
“Se tu próprio te exercitas para seres de pensamento penetrante, experimentarás assim por isso mesmo o menor prejuízo."
“Por isso mesmo” designa provavelmente aqui as sensações: assim, pelo exercício torna-se mais forte e mais acutilante a gnôme, que é então capaz de dominar as múltiplas solicitações do sentir. Esta distinção pensamento-sensações não anuncia a ulterior distinção alma-corpo, porque – para Crítias – como nos informa Aristóteles, a alma é essencialmente poder de sentir; ora, se a sensação se produz devido ao sangue, segue-se que a alma é o sangue. A alma, poder de vida, é, por conseguinte, indistinta do corpo. Esta doutrina da alma-sangue não basta para classificar esta antropologia de materialista já que, acima da alma e diferente dela, há, como se viu, a gnôme.
Untersteiner propõe que se relacione gnôme com tropos o “caráter”, que seria a sua “manifestação concreta”. A teoria do caráter aparece então em Crítias como o elo de ligação entre a sua concepção do homem e a respectiva concepção política; explica a sua idolatria por Esparta e a sua educação guerreira, os seus costumes, a sua Constituição.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 111-112).