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45 – Protágoras e 45.1 – O homem medida, de Protágoras.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

45 – Protágoras e 45.1 – O homem medida, de Protágoras.

 

A famosa frase de Protágoras diz:

 

De todas as coisas o homem é a medida das que são que são, das que não são que não são”.

 

Mario Untersteiner traduz o fragmento acima assim:

 

"O homem é o dominador de toda a experiência, seja em relação à fenomenalidade de tudo quanto é real, seja em relação a nenhuma fenomenalidade de tudo aquilo que é privado de realidade".

 

Está pequena frase é um dos maiores tormentos dos pensadores desde, praticamente, o seu pronunciamento acerca de 2.500! Desde então rios de tinta têm sido gostos para explicá-la, difamá-la, entendê-la, condená-la, aplaudi-la!

Ao cunhar sua famosa frase “o homem é a medida de todas as coisas”, Protágoras pode e deve ser considerado o primeiro dos humanistas. (Enciclopédia, p. 261)

A frase famosa de Protágoras, cujo contexto não dispomos, e que já recebeu inúmeras interpretações, especialmente aquelas que buscam desqualificar o autor, é perfeita.

Nada mais apropriado que dizer que “o homem é a mediada de todas as coisas”, isso por uma simples e fundamental razão: o homem é o único animal que valora!

Se ele é o único animal a atribuir valor às coisas, nada mais certo que apontá-lo (e isso é uma simples constatação) como sendo ele a medida de todas as coisas.

O seria o ouro se o homem não o valorasse?

E o ar que respirarmos? Até este bem tão fundamental passa a receber um valor inferior aos efluentes poluentes, pois o homem prefere poluir o ar, estragando-o, que preservá-lo, dando, assim, maior valor a outro bem que ao próprio ar que o mantêm vivo.

 

Olhamos todas as coisas com a cabeça humana,

e é impossível cortar essa cabeça;

mas permanece a questão de saber

o que ainda existiria do mundo

se ela fosse mesmo cortada”. (Nietzsche, Friedrich. Humano, Demasiado Humano - um livro para espíritos livres. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo, Companhia das Letras. São Paulo).

 

Antecedentes do HOMEM MEDIDA de Protágoras.

 

Nos diz Guthrie:

 

Além de sua distância, os pré-socráticos eram desacreditados por suas mútuas contradições. [Osório diz: Protágoras viu isso!]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 20).

Eis algumas interpretações que parecem sintetizar todas as demais:

 

O principal centro da vida pública na antiga Atenas era a ágora, o lugar do mercado e das reuniões, situado aos pés da Acrópole. Nos confins do enorme triângulo formado por esta praça, elevavam-se os templos e os edifícios administrativos e da assembleia da cidade-estado. Aqueles que não participavam da vida política passeavam talvez por entre os postos de venda que se distribuíam pela praça e encaminhavam-se, por fim, para o monumento aos heróis de Atenas, em cuja base eram expostos fragmentos de papiro com os últimos comunicados públicos.

Se alguém entrava na tenda ao lado, a do sapateiro Simón, para buscar os sapatos que este havia remendado, encontrava frequentemente o filósofo Sócrates, que, assim como o chefe de estado Péricles, era cliente de Simón. Assim, qualquer pessoa podia ali iniciar uma conversa com Sócrates, que terminaria à sombra de um pórtico. Também era possível encontrar Protágoras, a quem se poderia perguntar se as aulas de oratória continuavam sendo tão produtivas.

Naquele tempo, Protágoras gozava de fama. Era amigo de Eurípedes, o autor das tragédias, e do chefe de estado, Péricles. Protágoras provinha de uma família pobre oriunda de Abdera, na Trácia, perto da atual fronteira entre a Grécia e a Turquia. As ridicularias de que eram acusados os seus habitantes deram lugar à palavra "abderita", sinônimo de simplório ou ignorante. Como que por despeito, Abdera viu nascer alguns dos homens mais célebres, como o filósofo naturalista Demócrito e o já mencionado Protágoras.

Aos 25 anos, Demócrito podia honrar-se de ter "descoberto" o jovem Protágoras, que por aquela altura ganhava o sustento da família transportando mercadorias para Abdera. Um dia, Demócrito testemunhou que Protágoras carregava uma grande quantidade de madeira em cima do seu burro. A habilidade que Protágoras evidenciara foi, para Demócrito, um indício de que o jovem também podia ser dotado para a filosofia. Decidiu ocupar-se dele, e Protágoras não decepcionou seu célebre mecenas. Demonstrou possuir grandes dotes, sobretudo como orador. Depois de uma grande temporada trabalhando como leitor público em Abdera, mudou-se finalmente para a Atenas de Péricles, que acabara de ordenar que na Acrópole, o monte de rocha branca que dominava a cidade, fossem erigidos novos edifícios suntuosos como o Parténon.

O governo de Péricles não só foi testemunha do florescimento da arquitetura, do artesanato e de todas as artes, como também teve a experiência do apogeu da democracia como forma de organização social. Segundo Péricles, vários atenienses de condição modesta deveriam participar também no governo e cobrar um pagamento pela sua atividade política. Naqueles dias, talvez os melhores que a cidade viveu, emigrou para Atenas um considerável fluxo de pessoas, sobretudo intelectuais, provenientes de outras zonas da Grécia.

Em Atenas, Protágoras converteu-se rapidamente num professor de oratória rico e famoso. Como era possível? A resposta pode ser encontrada na forma radical de democracia que se praticava na cidade no tempo de Péricles. As assembleias populares, nas quais se tomavam as decisões políticas mais importantes, não eram um lugar reservado a um grupo de eleitos, mas estavam abertas a todos os habitantes da cidade. Como todos eram considerados politicamente capazes, os funcionários políticos, como os membros do senado e dos tribunais, eram eleitos ao acaso, de entre as filas da assembleia popular. Só os estrategistas como Péricles e os responsáveis pelas finanças eram eleitos por votação. Por isso, qualquer um que desejasse conquistar poder e influência na cidade não deveria confiar no fato de pertencer à nobreza ou deter grande riqueza, mas ser capaz de argumentar e convencer. O fato de os discursos públicos se converterem cada vez mais em questões de rivalidade retórica era muito próprio do caráter grego; não foi por acaso que eles foram os inventores dos jogos Olímpicos e celebraram com entusiasmo competições artísticas e teatrais. Esse ambiente era um terreno propício para os sofistas, aqueles eruditos que davam aulas de oratória e ensinavam as técnicas retóricas que facilitavam a defesa de qualquer opinião. Protágoras foi o precursor e a figura principal da profissão, e é possível que tenha sido também o primeiro a adotar a designação de sofista.

Embora o adjetivo "sofista" se tenha aplicado mais tarde a pessoas cujo espírito de contradição se quer realçar, nos tempos de Protágoras a palavra tinha uma conotação positiva, pois correspondia ainda à sua etimologia grega: "mestre da sabedoria." No entanto, os críticos dos sofistas, e sobretudo Sócrates e Platão, acabaram por ser muito mais célebres e influentes, e, também neste caso, a história foi escrita pelos "vencedores". Sócrates e Platão consideravam os sofistas uns melindrosos, e achavam que eles não eram, de modo algum, "soldados" do pensamento ao serviço da verdade e da moral. Sócrates, sobretudo, apesar do muito que tinha em comum com eles, esforçou-se por se distanciar claramente dos sofistas.

Para fazer justiça aos sofistas, e sobretudo a Protágoras, vem a calhar a frase que este proferiu e à qual já nos referimos: "O homem é a medida do universo" ou, em grego: Anthropos metron hapanton. Acredita-se que Protágoras a teria escrito num dos seus textos, intitulado Verdade. A frase, que mais tarde viria a conhecer-se na sua forma latina abreviada (homo mensura), já na Antiguidade era frequentemente citada. Aristóteles mencionou as palavras na sua Metafísica, e Platão incluiu-as no seu diálogo Theaitetos. Nele, Platão aborda a questão do conhecimento e se refere a Protágoras: "Disse em algum lugar que 'o homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, e das que não são, enquanto não são."

Com esta frase, Protágoras referia-se à capacidade de compreensão do ser humano. A filosofia discute, constantemente, se ele se refere aos homens como conceito genérico ou como indivíduos. Dizer que a humanidade é a medida do universo ou dizer que a medida do universo é cada um dos homens individualmente levará seguramente a conclusões totalmente distintas. Se consideramos a humanidade no seu conjunto como a medida do universo, então é porque aspiramos a encontrar conceitos válidos no geral. Deste modo, em honra ao conhecimento, perde-se a individualidade e suprimem-se as exceções. Pelo contrário, se interpretarmos na frase de Protágoras o homem como indivíduo e o considerarmos a medida do universo, estaremos pondo em relevo quão diferentes podem ser as visões do mundo e, com ele, a natureza poliédrica do conhecimento humano.

Muitas coisas nos levam a suspeitar de que Protágoras se referia a este último, e que aludia à capacidade de conhecimento do ser humano enquanto indivíduo. Neste sentido, a frase "O homem é a medida do universo" poderia significar também: "Todo humano, todo conhecimento sobre o universo, sobre o mundo, é subjetivo". Posto que só o ser humano mede e avalia os fenômenos do mundo, as suas conclusões baseiam-se necessariamente na sua visão limitada e subjetiva. Assim, pois, onde o ser humano entra em ação, não existe objetividade. O que o ser humano conhece não é absoluto, mas relativo. Com isso, pode-se refutar outra interpretação que costuma fazer-se da referida frase: que Protágoras pretendia elevar o homem acima da natureza. Se existe algo que Protágoras não propôs foi precisamente isso.

(Fonte: HELGE HESSE, A História do Mundo em 50 frases, traduzido por Maria Irene Bigotte de Carvalho, Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012, p. 23-26).

 

Ainda:

 

Em verdade, seja o homem (e entenda-se aqui este termo como se referindo a ser humano) no sentido individual ou no sentido universal, a medida de todas as coisas como o queria Protágoras (O homem é a medida de todas as coisas, das que são, enquanto são, das que não são, enquanto não são), não seria esta a reflexão final sobre nosso ser e existência social? Até que ponto a universalidade de conhecimentos e ideias presente nas universidades, nas suas divisões em faculdades e mesmo dentro de cada micro região disciplinar não representa a presença onipotente do relativismo de todos os saberes? O aluno recém ingresso em uma instituição de ensino é exposto a uma gama desenfreada de razões e contrarrazões, todas certas segundo uns e erradas segundo outros, onde, pela sua ignorância institucionalmente aprovada pode trocar a prova dos fatos e da razão pela prova mais saborosa da escolha pelos seus belos sentimentos de empatia para com esta teoria ou aquela outra, para com este modelo teórico ou aquele outro, para este grupamento do saber ou aquele outro. Incentivado por professores, todos, sem o perceber, viajam nas águas perigosas do total relativismo, esquecendo-se, talvez, que se o homem é a medida de todas as coisas no sentido universal e não individual, acabamos por nos afastar de um relativismo absoluto e nos aproximar de uma visão kantiana (fenômeno e numeno) ou piagetiana (ação sobre o objeto). Se esta relação entre algo próprio do sujeito conhecedor e algo próprio do objeto conhecido é característica universal de nossa espécie, ou melhor ainda, de todos os seres cognoscentes que possam existir, então estamos diante de conceitos tais como universalidade e necessidade”. (Fonte: Silvério da Costa Oliveira, www.doutorsilverio42.blogspot.com).

Tendo Protágoras abolido o critério da verdade (tudo é verdadeiro. O que leva, ao mesmo tempo, ao seu contrário: tudo é falso.), com sua famosa frase do “homem medida”, e não tendo ele respondido a Aristóteles, e nem poderia, pois já estava morto quando este nasceu, que busca provar o contrário (que a verdade existe, mas isso não significa que tudo seja verdade, pois uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo) com o seu “princípio de não-contradição”, quem o socorre é uma das famosas três teses de Górgias, que exporemos em capítulo próprio mais abaixo (nº xyz).

Desiludido, Platão se auto destrói no combate à Protágoras ao dizer:

 

A divindade poderia ser muito boa para nós, mais que tudo, medida de todas as coisas” (As leis, 716 c).

 

Kerferd conclui:

 

As consequências dessa maneira de ver as palavras são, contudo, paradoxais, e os paradoxos assim gerados fornecem matéria para uma considerável parte da história da filosofia grega em ambos os períodos, arcaico e clássico. Primeiro, priva de sentido toda declaração manifestamente negativa, visto que o que não é não pode ser nomeado, e isso leva à doutrina que não se pode contradizer — ouk estin antilegein — discutida abaixo (pp. 151ss) [Osório diz: em algum canto eu, Osório, disse que Parmênides leva a Protágoras quanto a tal doutrina]. Segundo, há uma dificuldade mais ou menos crucial que tem de ser enfrentada no caso de todas as expressões que envolvem qualquer grau de negação. Sentimo-nos obrigados a dizer que muitas declarações incluindo vários tipos de negação são, de fato, verdadeiras. Mas, nesse caso, o que é que eles querem dizer com a sua concepção do significado resumida acima? Heráclito estava pronto a rejeitar muito do que as pessoas sem conhecimento ordinariamente declaram ser fato. Mas ele mantinha que seu próprio logos, ou explicação, também era uma explicação correta da estrutura da realidade. Mas essa explicação correta era, para ele, uma explicação de estados de coisas que são contraditórias — o mundo aparente ao qual se refere a linguagem se acha cheio de contradições objetivas. [Osório diz: por que é impossível a contradição! A melhor explicação que encontrei!].

As consequências dessa maneira de ver as palavras são, contudo, paradoxais, e os paradoxos assim gerados fornecem matéria para uma considerável parte da história da filosofia grega em ambos os períodos, arcaico e clássico. Primeiro, priva de sentido toda declaração manifestamente negativa, visto que o que não é não pode ser nomeado, e isso leva à doutrina que não se pode contradizer — ouk estin antilegein — discutida abaixo (pp. 151ss) [Osório diz: em algum canto eu, Osório, disse que Parmênides leva a Protágoras quanto a tal doutrina]. Segundo, há uma dificuldade mais ou menos crucial que tem de ser enfrentada no caso de todas as expressões que envolvem qualquer grau de negação. Sentimo-nos obrigados a dizer que muitas declarações incluindo vários tipos de negação são, de fato, verdadeiras. Mas, nesse caso, o que é que eles querem dizer com a sua concepção do significado resumida acima? Heráclito estava pronto a rejeitar muito do que as pessoas sem conhecimento ordinariamente declaram ser fato. Mas ele mantinha que seu próprio logos, ou explicação, também era uma explicação correta da estrutura da realidade. Mas essa explicação correta era, para ele, uma explicação de estados de coisas que são contraditórias — o mundo aparente ao qual se refere a linguagem se acha cheio de contradições objetivas. [Osório diz: por que é impossível a contradição! A melhor explicação que encontrei!].

Para Parmênides, contudo, essa visão não era aceitável. Pois um mundo que está cheio de contradições objetivas está cheio de negações e, portanto, de não-mundos. Semelhante concepção não pode ser nem pensada nem falada. Por conseguinte, um mundo assim descrito não pode, absolutamente, ser real. Foi isso que levou Parmênides a separar o mundo das aparências do mundo do ser, ao tratar o primeiro dos dois como nada mais do que uma peça de ficção. "Pois nada é ou será, além daquilo que é, visto que o Destino o restringiu a ser inteiro e isento de mudança. Por isso, tudo o que os mortais postularam na crença de que era verdadeiro será nome apenas, vindo a ser e perecendo, ser e não ser, mudança de lugar e intercâmbio de luminosa cor" (DK28B8.36-41). [Osório diz: as razões de Parmênides!]

O contraste entre a posição de Heráclito e a de Parmênides foi claramente estabelecido por volta da metade do século V a.C. e forneceu o ponto de partida para discussões sofistas da teoria linguística. O próprio Parmênides, contudo, não teve seguidores, entre os sofistas, quando quis negar a realidade do mundo fenomenal. Para eles, o ponto de partida era o próprio mundo fenomenal, regularmente visto como constituindo a realidade toda e, conseqüentemente, como sendo o único objeto possível de cognição. Às vezes era considerado sujeito a contínua mudança. Esse era sabidamente ocaso do Crátilo Heracliteano (cf. DK 65.3). Segundo Sexto Empírico (DK 80A14), Protágoras tinha realmente descrito o mundo físico como em estado de fluxo, com emissões continuamente substituídas por acréscimos que recuperavam o que era perdido. Platão equiparava Protágoras a Eutidemo e considerava que ambos defendiam teorias que excluem a possibilidade de que as coisas tenham algum ser fixo próprio; em vez disso, pretendem que as coisas sejam arrastadas "para cima e para baixo" ao aparecer para nós (Crat. 386c-e, não em DK) [Osório diz: isso não é o fenômeno de Kant e Hurssel?]. Em Teeteto ele atribui a Protágoras uma doutrina "secreta" de percepção com implicações semelhantes. Embora o atributo "secreto" provavelmente signifique que essa doutrina nunca foi expressa por escrito pelo Protágoras histórico, a doutrina pode, contudo, representar bem o que Platão considerava a implicação natural das conhecidas concepções de Protágoras. Górgias andou um pouco na mesma direção, explicando a percepção dos objetos físicos da mesma maneira que Empédocles, a saber, postulando contínuas emanações de objetos que entram ou deixam de entrar nos vários poros do corpo (DK82B4). Platão, no Fédon, como já vimos, atribuiu aos antilogikoi e aos sofistas em geral a concepção de que todas as coisas que existem movem-se para cirna e para baixo, como se estivessem no Euripos, e nunca permanecem em repouso, em lugar nenhum, por qualquer período de tempo [90c4-6). [Osório diz: por que os sofistas não viam possibilidade de fazer ciência].

Mais importantes, contudo, eram as consequências do relativismo sofista (discutido abaixo, no capítulo 9), que era, na maioria das vezes, associado a uma forma de fenomenismo segundo a qual todas as aparências são igualmente verdadeiras (ou pelo menos igualmente válidas como cognições). Vendo desse modo o mundo real, embora permanecendo, ao mesmo tempo, totalmente comprometidos com a concepção de que as palavras devem nomear exatamente as coisas às quais se referem, senão não têm significação, os sofistas adotaram dois expedientes. A linguagem, como um todo, deve prover fórmulas para exibir a realidade, e a estrutura da linguagem deve exibir a estrutura das coisas. Mas o mundo da experiência é caracterizado pelo fato de que todas as coisas nele, ou a maioria delas, ao mesmo tempo são e não são. Portanto, a linguagem também deve exibir a mesma estrutura. Isso ela deve fazer dando expressão a dois logoi opostos concernentes a todas as coisas. Mas isso, por si mesmo, não é suficiente. Ficamos com o problema da negação que corre o grave perigo de se tornar algo totalmente sem sentido, a menos que se encontre algum objeto que lhe possa servir de referência [Osório diz: por que da necessidade dos duplos discursos].

Esse problema foi atacado de duas maneiras diferentes, vistas como alternativas mutuamente excludentes, ou usadas para suplementar uma à outra. A primeira era corrigir a linguagem renunciando às sentenças negativas. Daí as famosas afirmações vinculadas: que não é possível contradizer, e que é impossível dizer o que é o falso. Isso restringiria a linguagem a afirmações positivas verdadeiras a respeito do mundo fenomenal. Mas sustentar que todas as afirmações são de igual valor não seria muito satisfatório, no mínimo porque privaria o sofista de sua reivindicação de maior sabedoria. De modo que se considerou um segundo artifício segundo o qual, entre logoi opostos, um logos na estrutura das coisas era superior, mais correto do que o outro, e esse constituía o orthos logos. Essa situação havia de ser repetida no discurso e na argumentação em que, de novo, um logos ou era, ou teria de se fazer ver como mais correto e mais forte do que o outro. [Osório diz: explicação da necessidade do argumento forte e argumento fraco!].

A arte de fazer um logos superior a outro estava especialmente associada a Protágoras, ao passo que a busca do onomatôn orthotôs, ou correção dos nomes, estava acima de tudo associada a Pródicos. Constituía uma segunda maneira pela qual a linguagem haveria de ser corrigida para ser posta de acordo com a estrutura da realidade percebida. A importância dessa tentativa na história da filosofia é considerável — representa o primeiro passo na busca daquilo que, nos tempos modernos, tende a se denominar linguagem única, a chamada linguagem filosófica, a linguagem primordial ou atômica, a linguagem "corrigida" do lógico, o ideal que inspirou, entre outros, o primeiro Wittgenstein nas suas tentativas de restringir e delimitar o uso da linguagem significativa à que descreve o mundo, e a qual, na sua própria estrutura, refletirá a estrutura da realidade. Mas as tentativas modernas visam principalmente a reformar a estrutura da linguagem em relação à suposta estrutura (lógica) da realidade. O pensamento, no século V a.C., não estava interessado, em primeiro lugar, na estrutura lógica, mas em buscar uma relação uma-a-uma entre coisas e nomes, tendo por base que o sentido de qualquer nome deve ser sempre a coisa ou coisas a que se refere. [Osório diz: cada coisa um nome? Vide parágrafo seguinte].

Contudo, mesmo assim a correção envolvida poderia ser extremamente radical e o Crátilo, de Platão, se abre com a notável afirmação atribuída a Crátilo, segundo a qual (383a-b) "Cada coisa tem um nome correto próprio seu, que vem por natureza; e um nome não é o que quer que as pessoas chamem uma coisa por convenção, meramente algo de sua própria voz aplicada à coisa, mas há, nos nomes, uma espécie de correção estabelecida, que é igual para todos os homens, tanto gregos como bárbaros". Isso nos introduz ao ideal de uma única língua natural e, acima de tudo, universal que, idealmente, poderia substituir todas as línguas existentes.

O método de procedimento de Pródicos não estava limitado a ele — segundo Platão (DK 84A17), ele o obteve de Damon e dele partilhavam também outros sofistas. O método consistia em Diaeresis ou Divisão dos nomes e assim é regularmente rotulado por Platão e, depois dele, por Aristóteles. Podemos dizer que seu método normal consistia, como argumentou Classen, em pôr dois nomes um contra o outro a fim de abstrair deles o sentido básico que partilham e descobrir as sutilezas de sentido em que diferem. Mas as palavras não são definidas individualmente — ele não está perguntando "o que é x?", mas "em que aspecto x é diferente de y?" Isso serve para distinguir a sua abordagem da de Sócrates, do qual, no entanto, ele continua sendo o precursor em todos os pontos essenciais. Sócrates pergunta simplesmente “o que é x?”. Mas não há por que tentar descobrir uma outra diferença, sugerindo que Pródicos está interessado no sentido próprio das palavras, ao passo que Sócrates está interessado na coisa real. Como vimos, para ambos, o significado de uma palavra consiste naquilo a que ela se refere, e a visão correta foi expressa por Classen, quando diz que ao descrever qualquer objeto, ou uma dada situação, Pródicos observará: essa palavra é apropriada, ao passo que aquela, embora quase equivalente e idêntica quanto ao sentido, não é. Sócrates vai pelo mesmo caminho, exceto que, quando indaga o que é x, o onoma ou nome que está investigando não é usualmente uma única palavra, mas antes uma fórmula consistindo em uma série de palavras, um logos ou uma definição”. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 124-130).

 

Já Gilbert Romeyer-Dherbey, diz:

 

As Antilogias mostraram-nos uma natureza instável, indecisa, desempenhando sempre um duplo papel; ora, uma medida surgiu que vai travar este movimento da balança, decidir um sentido e anunciar a cor. Esta medida é o homem. É por isso que o escrito sobre A Verdade começava pela célebre fórmula:

O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. [Osório diz: frase de Protágoras]

Notemos, antes de mais, que Protágoras não utiliza, para designar a coisa de que o homem é medida, o termo pragma, mas chrema, que significa mais particularmente uma coisa de que nos servimos, uma coisa útil.

Falta o problema da extensão a dar à palavra homem (ánthropos), problema posto, pela primeira vez – parece-nos – por Hegel. Os Antigos, na esteira de Platão, entenderam a palavra homem na fórmula de Protágoras como designando o homem singular, o indivíduo com as suas particularidades específicas. Mas pode alargar-se a extensão da palavra homem e compreender que significa não a singularidade contingente, mas o universal, a humanidade, cuja essência pertence a todo homem. Homem significa então a natureza humana; tal é a interpretação que se dá no séc. XIX. Mas, depois de ter distinguido estes dois sentidos possíveis da fórmula protagórica, Hegel pensa que esta distinção de sentidos ainda não tinha sido feita por Protágoras, que mistura os dois significados sem separar um do outro. Com efeito, escreve Hegel: “Para eles (os Sofistas), o interesse do sujeito na sua particularidade não se distingue ainda do interesse do sujeito na sua racionalidade substancial”.

Encontramo-nos, portanto, perante três interpretações possíveis. A primeira leva-nos diretamente, como reconheceu Platão, ao relativismo cético, doutrina que se destrói a si própria reduzindo todos os seus testemunhos ao mesmo plano: com efeito, Protágoras deveria confessar que não é superior em juízo “não digo apenas a qualquer outro homem, mas mesmo até a um peixe-cabeçudo” [Osório diz: idiotice platônica, já que peixe não emite juízo! O mau dele de misturar as coisas!]. O ensino torna-se inútil “se verdadeira é a Verdade de Protágoras” [Osório diz: não é “verdade”, é que a afirmação é apenas uma parte do ensino. O mito de Prometeu dá a outra parte!], porque a opinião do mestre não tem nenhuma precedência sobre a do aluno. Segundo esta primeira interpretação, Protágoras teria, portanto, afirmado de alguma maneira muito antes de Pirandello: “A cada um a sua verdade.” – A sorte desta leitura, que não conta sequer com as retificações de Platão na continuação do Teeteto, explica-se, sem dúvida, pela coincidência com a imagem desfavorável que se fizera dos Sofistas, que tradicionalmente só existem para servir de alavanca fácil.

A segunda interpretação é preferível e permite deixar continuar, no seio do fenomenismo, uma objetividade científica; uma convergência dos juízos é possível na aparência e, por conseguinte, na separação entre a verdade e o erro. Assim se fez mergulhar o pensamento de Protágoras no individualismo e no ceticismo quando, precisamente, o que pretende é sair deles; passados séculos ainda se interpretam em sentido contrário as intenções do seu autor. [Osório diz: Protágoras e o ceticismo. Ver Barbara Cassin, também]

A terceira leitura – O homem individual e o homem universal são, escreve Untersteiner, “dois momentos de um processo diatético”; a verdade está precisamente na passagem do primeiro ao segundo sentido: a opinião pessoal verifica-se pelo seu acordo com as opiniões dos outros. A opinião singular fortalece-se com o contributo de outras opiniões que lhe são adequadas; o seu encontro forma a verdade. Se a opinião singular não é reforçada por qualquer outra, ou por demasiado poucas, desaparece e não pode aspirar ao verdadeiro, pelo menos enquanto permanecer marginal [Osório diz: como se forma a verdade/O Professor Tercio usa isso quando fala de Hermenêutica]. O conceito de homem, uma vez que é, se se pode dizer, de extensão variável, entra em tensão consigo próprio: opõe-se a si quando as opiniões particulares divergem, e readquire a sua unidade quando as particularidades se conciliam. O momento da particularidade, ainda que real, permanece um momento negativo, que tende a mergulhar de novo, no terreno das antilogias; o momento da universalidade é o positivo e constitui o fundamento daquilo que Protágoras chama o discurso forte. Somos assim levados à análise da terceira tese de Protágoras. (p.

 

IV - O discurso forte

 

Cada indivíduo é, certamente, a medida de todas as coisas, mas é uma medida muito fraca se permanece só com a sua opinião. O discurso não partilhado constitui o discurso fraco (hettón logos); aliás, mal chega a ser um discurso porque dizer é comunicar, e toda a comunicação supõe algo de comum. Quando um discurso pessoal, pelo contrário, encontra a adesão de outros discursos pessoais, este discurso, reforçando-se com todos os outros, torna-se discurso forte (kreitón logos) e constitui a verdade. [Osório diz: como se produz a verdade].

(...)

Portanto, a teoria do discurso fraco e do discurso forte não constitui, de modo nenhum, o ato de nascimento da erística, como afirma Aristóteles; não consiste em fazer viajar a evidência ao gosto da eloquência de um hábil advogado, de acordo com as necessidades da causa e o interesse da sua parte, como fez crer uma tradição obstinada. Na realidade, esta teoria parece estar em estreita relação com uma certa prática política, precisamente a da democracia ateniense. Certos indícios podem, antes de mais, encaminhar-nos para semelhante interpretação. Vimos Platão sublinhar que, aos olhos de Protágoras, o Bem não pode existir só e único como deve existir o Bem em si; Protágoras só pode pensar um Bem com facetas, disperso, multicolor, em síntese, um “Bem variegado”. Ora, esta palavra poikilon é retomada por Platão em A República para caracterizar a democracia: a constituição democrática é “como um manto multicolor”. Outro indício. (p. 26) No Protágoras de Platão, Protágoras mostra que a lei da cidade se aplica a todos, “obriga os que mandam e os que obedecem a conformar-se-lhe”. Ora, esta expressão é utilizada por Aristóteles para caracterizar a democracia. Este regime pensa assegurar a liberdade dos cidadãos pela alternância do poder: o cidadão é, com efeito, “alternadamente governado e governante”. É pela alternância do poder, característica da democracia, que a lei da cidade pode efetivamente aplicar-se indistintamente a todos, e tanto aos governantes como aos governados. Evocamos agora o terceiro argumento, que é mais um indício. No mito de Epitemeu e de Prometeu, Protágoras estabelece uma clara diferença entre a arte política e as restantes; uma vez que estas últimas são da alçada de especialistas, Hermes, pelo conselho de Zeus, distribuiu entre todos os homens a virtude política, cujas duas componentes são a justiça e o respeito. “Que todos dela partilhem, diz Zeus; com efeito, as Cidades não poderiam crescer se apenas uns tantos delas partilhassem, como é o caso das outras artes.”. É por isso, conclui Protágoras, que os atenienses e as outras cidades democráticas estabelecem uma diferença entre os problemas técnicos e problemas políticos: para os primeiros, só admitem a opinião dos especialistas; para os segundos, pensam que todo o homem se pode pronunciar validamente. Sem a posse unânime da virtude política, as cidades não poderiam existir. A afirmação da competência política partilhada por todos caracteriza o regime democrático; será – não nos esqueçamos – recusada por Platão que, precisamente por isso, estabelecerá a arte política acima das outras e dela fará um assunto de especialistas. (p. 27) [Osório diz: muito boa esta explicação em especial por mostrar o espírito antidemocrático de Platão e Aristóteles!].

Ora, se cada um é capaz de possuir a virtude política, isso significa que na cidade se pode constituir um discurso unânime ou, pelo menos, maioritário, que constitui o discurso forte, representando então o discurso isolado e marginal o discurso fraco. A concepção do discurso forte tem pois, como fundamento, uma experiência política, e esta experiência, longe de ser a do despotismo ou da ditadura, é a da democracia; o que dá ao discurso a sua força é o consensus que provoca. A verdade da pessoa privada é então o cidadão, e na igualdade democrática não se pesam as vozes, contam-se. É por isso que, num primeiro tempo pelo menos, a constituição do discurso forte é uma tarefa essencialmente coletiva; cada qual privilegia dele o que há de comum com outrem, o que é universalizável. A educação é, então, coeducação; se a virtude política é, de fato, a tarefa de todos, é porque vem de todos, e Protágoras, para convencer Sócrates, lança mão de uma comparação esclarecedora:

Toda a gente ensina a virtude o melhor que pode, e não te parece que haja alguém para a ensinar; é como se procurasses o mestre que nos ensinou a falar grego: não o encontrarias.”

Portanto, a virtude política é, na cidade, a coisa mais bem distribuída: o discurso tirânico é um discurso violento, mas não um discurso forte; também a dimensão propriamente “política” desaparece com a submissão.

Vendo no homem essencialmente um cidadão que, em relação ao Poder, é parte beneficiada, não há dúvida que Protágoras é, realmente, o criador da cultura geral [Osório diz: afirmativa poderosa e desconsertante!]. A divisão do trabalho não permite a constituição do discurso forte porque destrói todo o espaço de troca [Osório diz: o trabalho como impeditivo do discurso]; compreende-se então, a razão da desconfiança de Protágoras perante as diversas técnicas (téchnai) que opõe à política. A condição de possibilidade da virtude política será um conjunto de conhecimentos possuídos por todos os cidadãos, permitindo-lhes encontrar-se numa plataforma comum, ou antes, na praça-forte do discurso partilhado. Compreende-se também que Protágoras tenha dedicado a sua existência à educação do cidadão, e que a seus olhos toda a educação seja educação política [Osório diz: que governo o adotaria?]. É que a paideia tem como efeito substituir os desvios particulares por um modelo cultural consistente, que engloba os indivíduos não apenas no espaço, geograficamente, mas também no tempo, historicamente. A cultura é um discurso forte porque a História a reforça com toda a unanimidade das gerações passadas. Nesta época, é normal que Protágoras tenha tido – como Aristóteles nos explica – grande (p. 28) preocupação pela gramática. Com efeito, a gramático regula a língua para a fazer linguagem de todos; as suas regras universalizam o emprego dos signos. Portanto, é por ela que a palavra ganha força, ao passo que o grito é o discurso fraco, sendo radicalmente individual.

Apesar disso, se o discurso forte extrai, de fato, a sua força da massa dos sufrágios que granjeia, isto não significa que Protágoras professe uma igualdade radical de todas as opiniões e uma identidade de sabedoria em todos os indivíduos. Com efeito, os homens melhores sabem propor aos outros os discursos capazes de captar a sua adesão; o discurso de um só torna-se então discurso forte a par da sua capacidade intrínseca de universalização. A sabedoria consiste em saber substituir, pela persuasão e argumentação, um discurso inconsistente, porque local, por um discurso mais pleno, porque global. O espírito superior sabe, pois, substituir uma aparência pobre, cujo impacto é limitado, por uma aparência rica, isto é, capaz de estreitar os consentimentos e de construir uma república dos espíritos. A educação é, portanto, possível e legítima, já que é o resultado deste espírito superior que sabe fazer a separação entre a opinião que vale menos e a que vale mais, e sabe levar a partilhar a segunda e deixar de lado a primeira, tal como o médico, com os seus remédios, substitui os sintomas da doença pelos sintomas da saúde. Assim também, há em política governos mais ou menos sábios; o mais sábio é o que, por meio do seu discurso, leva a adotar pelos seus concidadãos – isto é, universaliza – as disposições mais úteis à comunidade. O líder politico, polarizando os votos à volta do seu nome, cria o discurso forte da cidade e dá-lhe, com isso, a verdade e a justiça, já que o seu discurso livremente partilhado se torna o discurso comum. O discurso em questão pode, por outro lado, ser tanto mais eloquente porque mudo, e consistir numa simples atitude significativa, um comportamento cujo exemplo é contagioso; tal parece ser o sentido de um fragmento, referido por Plutarco, em que Protágoras faz referência à atitude de Péricles depois da morte dos seus dois filhos Paralos e Xantipos, mortos havia oito dias, não deixando o pai transparecer a sua dor:

Com efeito, todos os que o viam suportar com coragem os seus lutos pessoais julgavam que era magnânimo e corajoso e mais forte que eles, conhecendo apesar de tudo o desapontamento que era o seu em tais provas.”

Assim, se para medir o discurso forte se contam mais as vozes que o seu peso, não é menos verdade que certas vozes pesam mais que outras na medida em que são capazes de juntar as outras à sua volta, isto é, ao fim e ao cabo, de conter afirmações e decisões generalizáveis. A teoria do discurso forte em Protágoras parece-nos, por conseguinte, apresentar uma inspiração política correta, e esta inspiração não é a do maquiavelismo, é a da democracia, tal como Atenas a conheceu na brilhante época de Péricles. [Osório diz: a melhor explicação que li sobre o discurso forte e o fraco!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 23-29).

 

Ensina Kerferd:

 

Usamos os termos logos e logoi que não foram traduzidos, ou o foram diversamente por "afirmações", "argumentos" e (no singular) por "fala" ou "discurso" e, pelo menos em uma ocasião, pareceu apropriado falar de um logos como ocorrendo "na estrutura das coisas". Na verdade, uma pesquisa nos dicionários revela imediatamente que a faixa de significados ou aplicações da palavra grega logos é ainda mais larga do que poderia sugerir a variedade de traduções dadas acima. Não é, estritamente falando, com uma palavra com diferentes sentidos que estamos lidando aqui mas, antes, com uma palavra com uma série de aplicações relacionadas, todas, com um único ponto de partida. Esse é um fenômeno que, de acordo com G. E. L. Owen, veio a ser rotulado de "significação focal", embora talvez "referência focal" fosse uma expressão melhor, visto que o que está envolvido é uma referência extra linguística a alguma coisa que se supõe ser fato no mundo à nossa volta. No caso da palavra logos, há três áreas principais de aplicação ou uso, todas relacionadas por uma unidade conceitual subjacente. São elas, em primeiro lugar, a área da linguagem e da formulação linguística, portanto fala, discurso, descrição, declaração, afirmação, prova (quando expressa em palavras) e assim por diante; em segundo lugar, a área do pensamento e dos processos mentais, portanto reflexão, raciocínio, justificação, explicação (cf. orthos logos) etc.; em terceiro lugar, a área do mundo, aquilo sobre o que somos capazes de falar e pensar, portanto princípios estruturais, fórmulas, leis naturais e assim por diante, desde que, em cada caso, sejam considerados realmente presentes e exibidos no processo do mundo.

Embora em qualquer determinado contexto a palavra logos pareça apontar principalmente, ou mesmo exclusivamente, para apenas uma dessas áreas, a significação fundamental, usualmente, talvez sempre, envolve algum grau de referência às duas outras áreas também, e isso, acredito, é verdade tanto para os sofistas como para Heráclito, para Platão e para Aristóteles. Por isso, no que se segue, onde por conveniência o termo "argumento" é usado como tradução, deve-se lembrar que isso será enganoso a menos que seja entendido como normalmente referindo-se, em certo grau, a todas as três áreas mencionadas acima.

Diógenes Laércio inicia o seu breve sumário das doutrinas de Protágoras (DK 80A1) com a afirmação: "Ele foi o primeiro a dizer que há dois logoi [argumentos] concernentes a todas as coisas, sendo opostos um ao outro. Foi por meio desses logoi que passou a propor argumentos envolvendo uma série de estágios, e foi o primeiro a fazer isso". Essa doutrina é firmemente associada a Protágoras em outras fontes também (DK 80A20) e, segundo Sêneca (Ep. 89.43), ele queria dizer, com isso, que se pode tomar qualquer lado de uma questão e debatê-la com igual sucessoaté mesmo a questão se todo assunto pode ser debatido a partir de qualquer um dos pontos de vista. É claro que sempre houve argumentos opostos desde que a raça humana se entreteve em argumentar. Mas o aspecto essencial não era simplesmente a ocorrência de argumentos opostos, mas o fato de que ambos os argumentos opostos pudessem ser expressos por um único orador, como se fosse dentro de um único argumento complexo. [Osório diz: frase de Protágoras]

Essa doutrina, de fato, era bem conhecida na segunda metade do século V a.C., e não estava confinada em Protágoras. Um fragmento da peça Antíope, de Eurípedes, que não pode ser anterior a 411 a.C., diz: "Em todos os casos, se a pessoa for inteligente no falar, poderia estabelecer um debate de argumentos duplos" (fr. 189N) [Osório diz: Eurípides pode dizer isso sem sofrer as mesmas condenações dirigidas contra Protágoras?]; é interessante notar que, aparentemente, segundo Aristides, era um ator, na peça, que expressava ambos os argumentos. Em As nuvens, de Aristófanes, produzida pela primeira vez em 423 a.C., há um famoso debate entre dois logoi ou argumentos personificados — o Argumento Justo e o Argumento Injusto [Osório diz: aqui começa a inversão! Forte é trocado por justo / fraco é trocado por injusto]. Como já vimos, existe de fato um tratado conhecido como o Dissoi Logoi, ou "Argumentos Duplos" (DK 90), a ser datado provavelmente do início do século IV a.C. Começa declarando "Argumentos duplos concernentes a bons e maus são apresentados, na Grécia, por aqueles que se dedicam à filosofia", e os três parágrafos seguintes começam da mesma forma, mas discutem respectivamente o belo e o feio, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso. Sob cada título são apresentados argumentos opostos ou antitéticos.

O autor do tratado é desconhecido. É, sem dúvida, de caráter sofista, e alguns quiseram atribuí-lo à escola de Protágoras, se é que havia uma. Mas há, aqui, o perigo de circularidade no argumento. A técnica de argumentos opostos é certamente atribuída a Protágoras. Mas, enquanto não ficar estabelecido que estava confinada nele, não se deve concluir que todos os outros exemplos procedam exclusivamente dele. De fato, há testemunhos de que essa maneira de ver as coisas era bem uma característica da época. Além das referências já dadas, eu citaria a passagem em Vida de Péricles 4.3, de Plutarco, segundo a qual

 

Péricles era também aluno de Zenão, o Eleático, que discursava sobre física, como Parmênides, e que aperfeiçoou um tipo de habilidade para questionar adversários, num argumento, que os levava a um estado de aporia através de argumentos opostos [di’antilogias]; assim se expressou Timon de Flius, quando falou do grande poder, cujo efeito jamais falhou, do homem de língua de dois gumes, Zenão, que tinha o domínio de todas as coisas.

 

Aqui, Timon está identificando, corretamente, o procedimento com o método pelo qual Zenão reduzia seus adversários ao silêncio, mostrando-lhes que suas posições preferidas eram contraditórias pelo fato de implicarem também a negação de si mesmas. Como já vimos, esse é o método da antilógica, e talvez seja o aspecto mais característico do pensamento de todo o período sofista.

Depois de mencionar a doutrina dos dois logoi opostos, Diógenes de Laércio prossegue citando a famosa declaração, manifestamente do início de um dos escritos de Protágoras: "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, quanto a como são, e das coisas que não são, quanto a como não são". O título da obra é dado por Platão (Teeteto 161 c) como sendo Sobre a verdade, ao passo que Sexto Empírico (DK 80A1) diz que ela está no início de Escritos demolidores, possivelmente um outro nome para a mesma obra. A interpretação dessa famosa sentença tem sido tema de discussão desde o tempo de Platão até os nossos dias. Na realidade, não seria exagerado dizer que a compreensão correta de seu sentido nos levará diretamente ao coração de todo o movimento sofista do século V. Alguns pontos que foram temas controvertidos no passado podem agora ser considerados razoavelmente resolvidos [Osório diz: frases de Protágoras]. Proponho simplesmente fazer uma lista deles a fim de guardar lugar para outros temas de controvérsia. O homem que é a medida é cada homem individualmente, como você e eu, e certamente não a raça humana, ou a humanidade tomada como uma entidade em si [Osório diz: o homem individualmente ou toda a humanidade?]. Em segundo lugar, o que é medido nas coisas não é a sua existência e não-existência, mas o modo como são e o modo como não são, ou, em termos mais modernos, quais são os predicados que devem lhes ser atribuídos como sujeitos em sentenças sujeito-predicado [Osório diz: o que o homem mede?]. Diz Platão, no Teeteto, 152a6-9), imediatamente após citar a afirmação, que isso significa que "cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece, e é, para você, tal como lhe aparece". O exemplo típico, mais tarde, na Antiguidade é este: se o mel parece doce para alguns e amargo para outros, então ele é doce para aqueles aos quais parece doce e amargo para aqueles aos quais parece amargo.

Mas se isso seria, hoje, provavelmente aceito pela maior parte dos estudiosos, só até aí se pode chegar com segurança — o resto é assunto de debate e de alguma dificuldade. A questão mais controvertida concerne à natureza e à situação das coisas das quais o homem é a medida. Será conveniente resumir a discussão de Platão no Teeteto, onde se dá um exemplo. Protágoras tinha dito que o homem é a medida de todas as coisas, querendo dizer que cada grupo de coisas é para mim tal como me aparece e é para você tal como lhe aparece. Assim, no caso do vento, às vezes quando o mesmo vento está soprando ele é frio para uma pessoa e, para outra, não. Nesse caso, portanto, Protágoras diria que o vento é frio para aquela que sente frio, e não é frio para a outra. Ora, é claro que essa teoria implica a rejeição da percepção cotidiana de que o vento em si mesmo ou é frio, ou não é frio, e uma das pessoas que o sente se engana supondo que o vento é tal como lhe parece e a outra está certa. Mas restam pelo menos três possibilidades: (1) não há um único vento, mas dois ventos particulares, o meu vento que é frio, e o seu vento que não é. (2) Há um vento (público), mas não é nem frio nem quente. A frieza do vento só existe particularmente para mim quando tenho a sensação de frio. O vento mesmo existe independentemente da minha percepção dele, mas a sua frialdade, não. (3) O vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem coexistir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra.

Todas essas três visões têm seus defensores modernos, embora a divisão maior seja entre os que defendem (2) e os que defendem (3)[Mas Gregory Vlastos sustenta que Platão não estava interessado em se pronunciar sobre a situação do vento não percebido, de modo que sua opinião liga (1) e (2);]. Chamarei a (2) de opinião subjetivista (embora o termo subjetivista pudesse claramente ser aplicado também, em sentido ainda mais forte, a (1)), e de opinião objetivista a (3). Mas é preciso compreender que (2) incluirá a opinião de que a percepção baseia-se, de modo causal, nos aspectos de fato presentes no mundo objetivo. Esses fatores causativos podem bem, numa opinião comumente sustentada, ser a fonte dos conteúdos das percepções de um indivíduo. Mas o que ele percebe são os resultados dessas causas, não os próprios fatores causativos; como esses resultados são determinados pelo impacto dos fatores causativos em si mesmo enquanto sujeito, e vão variar de pessoa a pessoa, de acordo com as diferenças no sujeito, será conveniente e, espero, não muito ilusório continuar a incluir essa teoria sob o título de teorias subjetivistas.

Depois de explicar que com a doutrina do homem-medida Protágoras queria dizer que o vento era frio para o homem a quem ele parecia frio e não era frio para o homem a quem não parecia ser frio, Platão continua dizendo, no Teeteto (152b9), que parecer é o mesmo que ser percebido, e conclui que Percepção, então, é sempre daquilo que é, e é infalível, sendo o mesmo que conhecimento. Agora, como a expressão "aquilo que é" é quase regularmente usada em Platão para se referir à realidade objetiva, permanente, enquanto distinta dos padrões mutáveis do mundo das aparências, isso parece favorecer mais a interpretação (3) do que a interpretação (2). Mas essa inferência dificilmente se justifica, no presente caso, visto que a doutrina do homem-medida não é um critério para a existência mas, sim, para determinar como as coisas são, no sentido de quais predicados devem lhes ser aplicados. Em outras palavras, ao dizer que a percepção é sempre daquilo que é, poderíamos entender que isso significa que, para Protágoras, percepção de um objeto branco é sempre a percepção de que ele é branco.

Mais importante para nosso propósito aqui é a afirmação de que percepções como tais são infalíveis. Isso significa que cada percepção individual, em cada pessoa individual e em cada ocasião individual é, estritamente falando, incorrigível — não pode nunca ser corrigida mediante comparação com a percepção de outra pessoa que difere da minha, nem por outro ato de percepção por mim mesmo em outra ocasião, mesmo que seja apenas um instante depois de minha primeira percepção. Se alguma coisa me parece doce, então é doce para mim, e isso não pode ser refutado pela experiência de outra pessoa que a percebe não como doce, mas como amarga, e assim por diante. Essa asserção é de considerável importância filosófica e o fato de ter sido proposta por Protágoras é certamente prova bastante clara de que, ao propô-la, Protágoras estava filosofando. Pois constitui a doutrina de que todas as percepções são verdadeiras. [Osório diz: sendo que a isso pode somar-se as 3 teses de Górgias, fechando a questão!].

Mas as consequências dessa posição filosófica não são insignificantes. Se todas as percepções são verdadeiras, segue-se que não há percepções falsas. Se todas as percepções são incorrigíveis, então não devem ser corrigidas, nem devem ser refutadas mediante a contraposição de outros atos de percepção, seja pela mesma pessoa, seja por outra. Que essas consequências foram de fato tiradas no período sofista, creio que pode agora ser estabelecido da seguinte forma. O ponto de partida deve ser o argumento no Eutidemo 283e-286d, de Platão. Aí se afirma que "não é possível contradizer", querendo dizer, com isso, que não é possível a uma pessoa contradizer a outra (ouk estin antilegein). Essa doutrina paradoxal está baseada numa segunda asserção paradoxal, a saber, que não é possível dizer o que é falso. Este segundo paradoxo é defendido da seguinte maneira.

Quem diz a verdade está falando qual é o caso daquilo que é o caso. A pessoa que fala de maneira inverídica está falando o que não é o caso daquilo que não é o caso. Mas aquilo que não é o caso simplesmente não existe. De modo que uma pessoa que diz o que não é caso não está falando de coisa alguma. Está usando palavras mas elas não se referem a nada porque aquilo ao que elas parecem estar se referindo simplesmente não existe [Osório diz: aqui, a própria atitude do Crático, de apenas mover o dedo, de que tanto fala Barbara Cassin para combater Aristóteles, vem ao caso. Ou seja, crático nem precisava balançar o dedo, mas, se desejasse, simplesmente falar, mas não precisa falar aquilo que Airstóteles quer que ele fale!]. Daí se segue, argumenta-se, que se duas pessoas fazem uma afirmação, ou (1) dizem a mesma coisa, e nesse caso não há contradição, ou (2) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa a respeito da qual está falando é tal como ela diz que é, e a outra pessoa está dizendo alguma coisa diferente do que diz a primeira pessoa. Isto também é o caso e, portanto, é verdadeiro, mas, porque é verdadeiro, será sobre alguma coisa diferente daquilo sobre o qual a primeira pessoa estava falando. Portanto as duas pessoas estão falando de coisas diferentes. Suas afirmações aparentemente conflitantes não constituem uma contradição porque não estão falando da mesma coisa, ou (3) uma pessoa está dizendo qual é o caso, isto é, o que é verdadeiro porque a coisa da qual está falando é como ela diz que é. A outra pessoa está dizendo alguma coisa verbalmente diferente, do tipo que geralmente se diz que é inverídico. Mas porque é inverídico não é, absolutamente, sobre alguma coisa e, portanto, não é sobre aquilo a que se referia a afirmação feita pela primeira pessoa. Ela está usando meras palavras que não se referem a nada e, portanto, não está contradizendo a afirmação verdadeira feita pela primeira pessoa.

Este, ou algo parecido com isso, é o argumento desenvolvido no Eutidemo. Ambas as asserções, que não é possível contradizer e que não é possível dizer o que é falso, têm uma longa história subsequente. Aristóteles (Met. 1024b32, Top. 104b21) atribuiu ambas a Antístenes, embora não diga que tiveram sua origem nele. Antístenes aparentemente ainda estava vivo em 366 a.C. e, com base nisso, tem sido comum negar que qualquer uma das doutrinas tivesse alguma coisa a ver com o movimento sofista. Os testemunhos contra essa opinião, entretanto, sempre foram consideráveis. Imediatamente após o relato no Eutidemo, resumido acima, Platão faz Sócrates dizer (286cl) que "tem ouvido esse argumento de várias pessoas em várias ocasiões — pois Protágoras e os que lhe estão associados costumavam fazer grande uso dele, como o fizeram outros ainda antes dele". Se não bastasse isso, temos também uma afirmação, no Crátilo (429c9-d3), de que há muitos, tanto agora como no passado, que dizem que é completamente impossível dizer coisas que são falsas. Certamente baseado em testemunhos como esse, Filopono, no século VI d.C., não tinha dúvida de que a doutrina pertencia de fato a Protágoras (in Cat. 81.6-8).

Mesmo assim, a posição poderia ter parecido a alguns ainda duvidosa, na falta de novos testemunhos. Inesperadamente, surgiu um. Em 1941, descobriu-se parte de um papiro com um comentário sobre o Eclesiastes, provavelmente de autoria de Dídimo o Cego (século IV d.C.). Uma passagem dele, de grande interesse e importância, se tornou acessível em 1966, ao ser publicada por dois especialistas, G. Binder e L. Lisenborghs. O que aí é dito é o seguinte:

 

Uma afirmação paradoxal de Pródicos nos é transmitida no sentido de que não é possível contradizer (ouk estin antilegein)... isto é contrário à ideia e à opinião de todos os homens. Pois todos os homens contradizem tanto nas suas transações cotidianas como em questões de pensamento. Mas ele diz dogmaticamente que não é possível contradizer. Pois, se duas pessoas se contradizem, ambas falam. Mas é impossível que ambas estejam falando com referência à mesma coisa. Pois ele diz que só a que está dizendo a verdade e que proclama as coisas tais como são realmente é que está falando delas. A outra, que está se opondo a ela, não fala da coisa, não fala a verdade. [Osório diz: falar da coisa (dizer a verdade) não contradiz quem não fala da coisa (não diz a verdade), pois ambos os emissores estão a falar de coisas diferentes, um da coisa o outro da “não coisa”! Logo, impossível a contradição]

 

Na tradição doxográfica, Pródicos é mencionado como aluno de Protágoras (DK84A1), e a passagem justifica completamente a atribuição da doutrina segundo a qual não se pode contradizer o período sofista em geral e, em particular, Protágoras e seus discípulos.

Podemos agora voltar à doutrina do homem-medida e ao exemplo dado no Teeteto. No caso de discordâncias de percepção entre duas ou mais pessoas, não é possível que qualquer das afirmações feitas envolva falsas descrições do que está sendo descrito. Para o homem a quem o vento parece frio, ele é frio; e para o homem a quem ele parece quente, ele é quente. Ambas as afirmações são verdadeiras e não há, aqui, possibilidade de falsidade. Mas, da mesma forma, não há contradição — as duas afirmações não são sobre a mesma coisa, visto que cada homem está falando apenas de sua própria experiência, ou daquilo a que se refere a sua própria experiência. Ele não tem acesso à experiência do outro homem ou àquilo a que se está referindo na experiência do outro homem, e não pode fazer sobre isso nenhuma afirmação significativa. [Osório diz: e aí entram as 3 teses de Górgias em apoio a Protágoras].

No caso, então, em que algo assim estivesse envolvido na doutrina da percepção de Protágoras, tal como expresso na sua doutrina do homem-medida, como relacionar isso com a sua afirmação "concernentes a todas as coisas há dois logoi, um oposto ao outro"? Surgem duas dificuldades. Primeiro, se as percepções de cada um deles são verdadeiras, e elas constituem logoi, poderia parecer que concernentes a todas as coisas não haveria dois logoi, mas um número muito maior, a saber, tantos quantos as diferentes percepções de diferentes pessoas, seja agora, ou no passado ou no futuro. A resposta poderia ser que a grande variedade de experiências de percepção se reduzirá sempre a apenas duas, quando se toma uma como ponto de partida. Todas as cores diferentes de vermelho são sempre, necessariamente, não-vermelhas; todos os sabores diferentes do doce serão sempre, necessariamente, não-doces. Portanto, os dois logoi opostos seriam compreendidos, respectivamente, como A e não-A. Mas isso leva a uma objeção mais grave. A e não-A são claramente contraditórios. Se, para Protágoras, há sempre, de fato, dois logoi opostos concernentes a todas as coisas, e todos os logoi são verdadeiros, o que aconteceu com a doutrina segundo a qual é impossível contradizer? Este é um problema que não se colocou tão nitidamente na interpretação mais antiga de Protágoras, porque, na visão mais antiga, ele não sustentava que é impossível contradizer. Mas era um problema que sempre esteve lá, visto que a doutrina do homem-medida parece exigir que não haja nunca logoi opostos sobre a mesma coisa; eles são sempre sobre coisas diferentes; por exemplo, minha experiência e sua experiência são coisas diferentes, não uma e a mesma coisa. Se, como agora vimos razão para supor, há forte indício de que, de fato, Protágoras sustentava que a contradição é impossível, parece que temos um conflito direto com a doutrina dos dois logoi opostos [Osório diz: penso que ele harmoniza isso com o mito de Prometeu! Embora as contradições sejam impossíveis, as opiniões dos homens são sempre verdadeiras, mas para cada um, daí a necessidade de buscarem a harmonia para saber qual debe prevalecer recebendo a aquiescência do outro].

Mas há uma resposta possível. O que é preciso é reconhecer que há dois diferentes níveis envolvidos. Como afirma a passagem de Dídimo, as pessoas de fato se contradizem uma à outra, no sentido de que opõem negativamente uma afirmação à outra, tanto na vida cotidiana como no argumento filosófico. Não há, provavelmente, situação alguma na qual isto seja, pelo menos psicologicamente, impossível, e isso foi reconhecido na citação da Antíope de Eurípides. O que é necessário que se diga é que no nível verbal é possível a contradição, mas que isso não se aplica ao nível das coisas sobre as quais estamos falando. Pois quando estabelecemos aparentes contradições, no nível das palavras, elas são só aparentes, e se ambas as afirmações têm sentido será porque são sobre coisas diferentes, não são sobre a mesma coisa. [Osório diz: Salvando a doutrina de Protágoras].

Esta explicação tem a vantagem de nos permitir entender uma afirmação histórica que, infelizmente, não tem sido regularmente incluída nas coleções de passagens relativas aos sofistas. No início de sua composição sobre Helena, escrita talvez por volta de 370 a.C., Isócrates fala de "homens que envelheceram afirmando que é impossível dizer coisas que são falsas, ou contradizer, ou opor dois argumentos (logoi) concernentes às mesmas coisas", e opõe esses homens, como grupo, a outros (que parecem ser platônicos) que mantêm a unidade das virtudes. E prossegue dizendo que, infelizmente, essa evolução não é apenas recente — todo mundo sabe que Protágoras e os sofistas de seu tempo nos deixaram escritos exibindo coisas desse tipo —, e então menciona Górgias, Zenão e Melissos. Em primeiro lugar, deve-se notar que essa passagem reúne três princípios — a doutrina dos dois logoi, a impossibilidade de falsidade e a impossibilidade de contradição, em relação a um único grupo de homens. Mas fala da impossibilidade da doutrina dos dois logoi, quando a Protágoras se atribuía a sua asserção positiva. Isso significaria que, afinal de contas, não é a Protágoras que se faz referência?

Não é isso. A formulação tradicional da doutrina dos dois logoi dizia que há dois logoi concernentes a todas as coisas. O que Isócrates diz é que "eles" sustentam que é impossível haver dois logoi concernentes às mesmas coisas (no plural). Em outras palavras, quando há dois logoi, eles concernem não a uma mesma coisa, mas a coisas diferentes. Não poderia ser que Isócrates esteja correto por estar preservando a resposta dada, no círculo de Protágoras, exatamente à dificuldade que estávamos discutindo? Nós sabemos que, em certo sentido, Protágoras tinha atacado a doutrina segundo a qual a realidade era Uma (DK 80B2).

Mas, se há dois logoi concernentes a todas as coisas, como é possível manter, ao mesmo tempo, que quando há dois logoi estes não se referem à mesma coisa mas a coisas diferentes? De fato, no Teeteto, não disse Sócrates (152b2) "quando o mesmo vento está soprando, uma pessoa o sente frio e outra não" — sugerindo, assim, que o vento é uma coisa, não duas coisas? A isso a resposta deve ser, obviamente, sim. Mas, nesse caso, o que aconteceu com a sugestão de que há duas coisas envolvidas, em vez de uma? A resposta só pode ser que uma coisa é a que funciona como sujeito, e os dois logoi são o que é expresso por termos predicados aplicados, por exemplo, ao vento, enquanto sujeito. Isso explicaria por que Aristóteles trata habitualmente a doutrina do homem-medida de Protágoras como implicando uma negação da lei da não-contradição. Para Protágoras, o mesmo vento é quente e não-quente (= frio). Isto envolve duas afirmações contraditórias, a saber, "o vento é quente", e "o vento não é quente", e até esse ponto os que fazem essas duas afirmações estão falando da mesma e única coisa. Todavia, na medida em que se considera o vento como contendo, ao mesmo tempo, duas qualidades, ou substâncias, a saber, quente e frio, também é verdade que as afirmações "o vento é quente" e "o vento é frio" se referem a duas coisas diferentes, a saber, o quente no vento e o frio no vento. Ambas as afirmações podem ser verdadeiras, sem contradição, visto que as duas afirmações são afirmações sobre coisas diferentes. Convém, aqui, mencionar a casual sobrevivência de uma passagem do livro de Protágoras, Sobre aquilo que é, citada por Porfírio (DK 80B2), na qual Protágoras argumentava longamente, usando uma série de demonstrações, contra os que apresentavam o ser como um. Podemos inferir que Protágoras insistia em que aquilo que é não é um, mas uma pluralidade em todas as ocasiões. [Osório diz: frase de Protágoras].

Evidentemente algumas das minuciosas interpretações sugeridas aqui estão abertas a contestação. O que quero sugerir é que há dados convincentes em favor da tentativa de interpretar a doutrina de Protágoras como uma contribuição intencional, séria, para um problema filosófico sério. Volto-me, em seguida, para a questão de saber até que ponto isso era algo a ser associado somente com Protágoras, e até que ponto representa uma abordagem partilhada também por outros sofistas, ou até pelo movimento sofista como um todo. Já tivemos ocasião de considerar o surpreendente novo testemunho que deixa claro que Pródicos estava ligado exatamente a esses problemas. Mas e os outros? Aqui, o testemunho disponível não é novo. Mas clama realmente, creio eu, por uma nova abordagem, não obnubilada pelas pressuposições tradicionais como acontece frequentemente no estudo dos sofistas.

O testemunho mais importante se encontra no tratado de Górgias intitulado, segundo Sexto Empírico, Sobre aquilo que não é ou sobre a natureza. Temos dois sumários distintos dessa obra, um preservado por Sexto (ver DK 82B3) e o outro, na terceira seção de um fragmento de texto em estilo doxográfico, erroneamente atribuído a Aristóteles e, por isso, incluído no Corpus de seus escritos sob o título "Sobre Melissos, Xenófanes e Górgias" — ou, abreviadamente, De MXG. Nesse tratado Górgias apresentou o seu argumento em três estágios: (1) nada é, (2) se é, não pode ser conhecido pelos seres humanos, (3) e se é, e é cognoscível, não pode ser indicado e tornado significativo para outra pessoa.

A interpretação do que Górgias está dizendo é difícil, e o certo é que ainda não está à vista uma compreensão unânime do seu sentido geral, sem falar dos seus argumentos detalhados. Contudo, sua importância dificilmente poderá ser superestimada. Afinal de contas, é o que mais próximo temos, ou jamais teremos, de uma apresentação técnica completa de um argumento sofista articulado do século V a.C. É um texto mais técnico e mais organizado do que o Dissoi Logoi, com o qual, sob outros aspectos, pode ser comparado. O seu tratamento pelos estudiosos sintetiza, de várias maneiras, o problema da abordagem erudita do movimento sofista como um todo. Houve basicamente três estágios. Durante muito tempo pensou-se que não tinha intenção séria, mas fora composto simplesmente como uma paródia ou uma pilhéria sobre filósofos, ou, na melhor das hipóteses, um exercício puramente retórico de argumentação [Osório diz: se é destruidor não sendo sério {se fosse o fosse!} é opinião de quem não consegue enfrentá-lo]. [160] De modo geral, é provável que essa visão não mais impere, embora ainda tenha defensores. Por isso Guthrie pôde escrever, a respeito do argumento apresentado na primeira das três seções da obra: "É tudo, claro, uma bobagem interessante" [Osório diz: como diria qualquer bobo sem resposta]. Um segundo estágio é alcançado por aqueles que estão preparados a levá-la a sério e a tomaram como um ataque geral e cuidadosamente orquestrado contra as doutrinas filosóficas dos eleáticos e, por extensão, contra as doutrinas de certos filósofos físicos entre os pré-socráticos. Esse tipo de interpretação toma o verbo "ser", no tratado de Górgias, no sentido de "existir". A primeira parte, então, argumenta que Nada existe, e passa a demonstrar isso argumentando que Não-ser não existe, tampouco Ser existe. Isso é dirigido contra a asserção de Parmênides de que somente o Ser existe e Górgias, com os seus argumentos, chega a uma posição de niilismo filosófico. Parmênides tinha destruído o mundo multiforme das aparências, mas reteve o mundo unitário do Ser Verdadeiro; Górgias apagou a lousa inteira, e ficou com simplesmente — Nada. [Osório diz: Górgias versus Parmênides].

(…)

Mas é tempo de voltar para as doutrinas de Protágoras, visto que ele, de várias maneiras, não só estava expressando [177] suas próprias opiniões, como também agindo como líder para o movimento sofista como um todo. Voltando ao Teeteto, descobrimos que sua doutrina do homem-medida tem de enfrentar uma objeção extremamente interessante. Como observa Sócrates (161d3-e3):

 

Se seja o que for que qualquer homem suponha, baseado na percepção, deve ser, de fato, verdadeiro para ele; se assim como ninguém há de ser melhor juiz da experiência do outro, também ninguém tem mais autoridade para investigar se a opinião do outro é certa ou falsa mas, como temos dito mais de uma vez, cada homem terá suas próprias crenças só para si mesmo, e todas elas são certas e verdadeiras, então, meu amigo, onde está a sabedoria de Protágoras, que o faz pensar que está habilitado para ser mestre de outros e ser regiamente pago por isso, e onde está nossa comparativa tamanha ignorância que precisamos ir a ele para instrução, quando cada um de nós é a medida de sua própria sabedoria?

 

A esse ataque Protágoras responde, no devido tempo, pela boca de Sócrates (166dl-8):

 

Mantenho que a verdade é como escrevi. Cada um de nós é a medida das coisas que são e das coisas que não são; mas há um mundo de diferença entre um homem e outro exatamente nisto, que o que é e aparece para um é diferente do que é e aparece para o outro. Quanto à sabedoria e o sábio, longe de mim dizer que não há tal coisa. Por sábio designo precisamente o homem que opera uma mudança e onde coisas más são e aparecem para qualquer pessoa faz coisas boas aparecerem e serem para si. [178]

 

[Osório diz: HIPÓTESE: Platão, para não condenar o sofista Sócrates diretamente (seu ódio era a traição amorosa) condena os outros sofistas, tentando, contudo, do rol deles excluir Sócrates]

 

A isso se segue um exemplo: para o doente, a comida parece e é amarga, para o homem saudável ela é e parece o oposto. Ambas as condições são igualmente verdadeiras, mas a segunda condição é melhor do que a primeira, e o médico muda a primeira condição para a segunda, de modo que a comida que anteriormente parecia e era amarga agora parece e é doce. Na educação, o sofista faz com palavras o que o médico faz com remédios, e substitui não o falso pelo verdadeiro, más opiniões piores por melhores. Aqui, o exemplo dado são coisas más que parecem e, portanto, são justas, que precisam ser substituídas por coisas boas que, então, parecerão e serão realmente boas. Isso se aplica não só ao indivíduo mas também a comunidades inteiras — para elas também a função educativa do sofista pode ser extremamente útil e benéfica (l 67c4-7). Uma pilhéria feita por Sócrates deixa claro que Platão estava bem consciente de que a substituição de uma experiência por outra era considerada, por Protágoras, uma substituição de um logos por outro: de fato o logos que tinha sido mais fraco tornou-se, agora, mais forte (172b8-9).

Essa maneira de olhar as coisas tem, contudo, implicações consideráveis para a doutrina do homem-medida. Na sua forma irrestrita, a doutrina do homem-medida parecia implicar que, se alguma coisa parecesse F para alguém, então é F para ele e o caso é o mesmo para todos os valores de F. É-nos dito agora, contudo, que algumas pessoas são mais sábias do que outras na questão de saber o que é melhor ou pior, e isso, por sua vez, leva a uma outra inevitável proposição: a de que pelo menos alguns julgamentos são falsos, a saber, os [179] julgamentos a respeito do que é vantajoso e não vantajoso. A necessidade dessa modificação da generalidade da posição original atribuída a Protágoras é plenamente reconhecida por Sócrates (172a5-b2) e é apresentada, por ele, como o tipo de coisa que o próprio Protágoras poderia ter dito se fosse capaz de voltar da região dos mortos, esticar de repente a cabeça para fora da terra até o pescoço e falar antes de afundar e desaparecer outra vez. Não tenho nenhuma dúvida de que essa defesa deve ser levada a sério — até onde ela era justificada pelo que Protágoras tinha de fato escrito pode permanecer questionável, mas acredito que seja uma indicação clara de que isso era o que Platão considerava ser a interpretação historicamente correta da doutrina de Protágoras.

Seja como for, a doutrina modificada é de considerável interesse. A famosa história contada por Heródoto (III.38) mostra que algo parecido com o que chamaríamos de um tipo de sociologia do conhecimento estava já começando a ser aplicado a valores morais: se fosse perguntado a todos os homens quais as melhores leis e os melhores costumes, cada um escolheria os seus próprios. Eurípides (fr. 19) fez um seu personagem dizer que nenhum comportamento é vergonhoso se não parece vergonhoso para aqueles que o praticam. Para muitos, nos nossos dias, opiniões sobre valores não são questões de fato objetivo como as opiniões sobre o mundo físico, e o que a doutrina (na forma modificada) de Protágoras provê é um modo de comparar julgamentos sobre questões de valor, não [180] em termos de sua própria verdade ou falsidade, mas em termos de suas conseqüências sociais. Que essa opinião não estava confinada em Protágoras, mas era muito mais amplamente sustentada, presumivelmente dentro do movimento sofista, torna-se evidente pela afirmação de Platão de que era também sustentada por aqueles que não estavam completamente de acordo com a doutrina de Protágoras (Teeteto 172b6-7).

Mas a aceitação da opinião modificada suscita outras questões. Até aqui, poderíamos dizer que a fórmula "se alguma coisa parece F para alguém, então é F para essa pessoa" aplica-se em casos em que F é interpretado como significando "quente", "doce", "justo", "bonito" etc.; mas não se aplica quando F é interpretado como significando "bom", "saudável" ou "vantajoso". E os outros casos? Se Protágoras diz que o que quer que pareça a uma pessoa é isso mesmo para essa pessoa, isso pode bem ser entendido como significando que qualquer julgamento é verdade para a pessoa que o faz, não só os juízos sobre qualidades morais e de percepção. Exatamente essa irrestrita interpretação da doutrina do homem-medida era atribuída a Protágoras por aqueles que, entre os seus críticos, a usavam como base para o contra-ataque, conhecido depois como peritropê, a virada-da-mesa. Isso já era bem conhecido quando Platão escreveu o Teeteto, pois nos é dito que fora usado contra Protágoras também por Demócrito (DK 68A114).

A objeção é mais ou menos assim (171a6-9): Protágoras, ao admitir que a opinião de cada um é verdadeira, deve reconhecer a verdade da crença de seus adversários a respeito de sua própria crença, quando eles pensam que ele está [181] errado. É imediatamente em resposta a esse argumento, de fato, que Sócrates sugere que Protágoras haveria de esticar sua cabeça para fora do chão, se pudesse. Mas Platão, na realidade, não dá essa resposta, infelizmente. Pois a aplicação do peritropê implica a declaração de que há uma contradição interna na posição de Protágoras, e a natureza dessa suposta contradição interna é importante para a interpretação da doutrina do homem-medida. Conforme uma formulação dessa doutrina, Protágoras tinha mantido, por exemplo, que quando o vento parece frio para Protágoras é frio para ele. Quando o (mesmo) vento parece quente para o seu adversário, então é quente para esse adversário. Mas, desde que as frases qualificativas em itálico sejam retidas em cada caso, não há, de fato, nenhuma contradição entre as duas afirmações — a declaração de que alguma coisa parece ser o caso para uma pessoa claramente não é contraditada pela declaração de que a mesma coisa parece não ser o caso para uma outra pessoa. Se "parece" for substituído por "é", ainda não há contradição, desde que forem mantidas as frases qualificativas "é para a" e "não é para b”. Se Protágoras sustentava a opinião de que o vento, em si mesmo, existe independentemente de minha percepção dele, mas que sua frialdade só existe privadamente para mim quando tenho a sensação de frio, e seu calor só existe privadamente para o outro quando esse outro tem a sensação de calor, não há nenhuma contradição, e a peritropê fracassa.

Essa pode ter sido a resposta que Sócrates supõe que Protágoras teria dado se tivesse podido esticar sua cabeça para fora do chão. Mas há inúmeras objeções a essa opinião. Pri- [182] meiro, a resposta é tão óbvia que seria de esperar que ela impedisse a formulação mesma da objeção peritropê logo de início. A objeção peritropê seria plausível, ao que parece, se as frases qualificadoras fossem removidas ou desconsideradas e a posição de Protágoras fosse entendida como envolvendo a afirmação de que o vento em si mesmo é e não é frio, e isso objetivamente, e não apenas como uma questão de como ele é sentido por diferentes observadores. Segundo, virtualmente, toda a tradição posterior, concernente ao sentido da doutrina do homem-medida de Protágoras, de fato a interpreta objetivamente, isto é, como envolvendo a opinião de que o vento em si mesmo é ao mesmo tempo frio e quente — quente e frio são duas qualidades que podem co-existir no mesmo objeto físico. Eu percebo uma, você percebe a outra. Isso torna a objeção peritropê totalmente compreensível. Terceiro, nessa tradição mais tardia, a objeção peritropê, na sua forma objetivista, é atribuída a ambos, Demócrito e Platão. Assim escreve Sexto Empírico (DK68A114): "Não se pode dizer que toda representação seja verdadeira, porque isso se refuta a si mesmo, como ensinaram Demócrito e Platão ao se oporem a Protágoras; pois, se toda representação é verdadeira, o juízo segundo o qual nem toda representação é verdadeira, sendo baseado numa representação, será também ver- [183] dadeiro e, portanto, o juízo de que toda representação é verdadeira se tornará falso" (da trad. ingl. de Bury). Isso se enquadra exatamente na opinião objetivista da doutrina de Protágoras, que se encontra, em outro lugar, em Sexto Empírico (DK80A14):

 

Ele diz que os logoi de todas as aparências subsistem na matéria, de modo que a matéria, na medida em que depende de si mesma, é capaz de ser todas essas coisas que aparecem a todos. E os homens, diz ele, apreendem coisas diferentes em tempos diferentes devido às suas diferentes disposições; pois aquele que está num estado natural apreende aquelas coisas subsistentes na matéria [itálicos meus] que são aptas a aparecer àqueles em estado natural, e os que estão em um estado não-natural apreendem as coisas que podem aparecer àqueles em um estado não-natural. Além disso, precisamente a mesma explicação se aplica às variações devidas à idade, e ao estado de sono ou de acordado, e a cada um dos diversos tipos de situação. Portanto, segundo ele, o Homem se torna o critério das coisas que são; pois todas as coisas que aparecem aos homens também são, e coisas que aparecem a homem nenhum também são sem ser.

 

Se a interpretação objetivista nos possibilita entender o sentido da objeção peritropê, como devemos supor que Protágoras teria respondido a ela, se tivesse podido esticar a cabeça para fora do chão? Lamentavelmente, não nos disseram. Mas podemos presumir que sua resposta poderia ter consistido de duas partes. Primeiro, no caso de qualidades percebidas, tomadas aqui como incluindo qualidades estéticas e [184] morais, bem como as qualidades normais percebidas pelos vários sentidos. Aqui sua resposta seria admitir que está colocando situações contraditórias. O mesmo vento é ambos, quente e frio, e isso porque é capaz de possuir qualidades contraditórias simultaneamente. É exatamente assim que as coisas são. Platão estava preparado para aceitar isso como uma descrição correta dos fenômenos, mas supunha que essa situação só é possível se, para além e acima dos fenômenos, houver também outras entidades, as Formas, que estão isentas da penosa situação contraditória que ocorre com os fenômenos. Protágoras, por outro lado, não estava preparado para supor quaisquer outras entidades além das fenomenais. Segundo, no caso de características tais como bom, mau, vantajoso e não-vantajoso, prudente e não-prudente, Protágoras simplesmente mantinha que essas características não estavam sujeitas à doutrina do homem-medida. Aqui há apenas uma verdade, não os dois logoi que se aplicam no caso anterior. De fato, há um sentido no qual Protágoras mantinha que a segunda classe de características, bom, mau, vantajoso etc., se aplica à primeira classe de características onde a doutrina dos dois logoi funciona plenamente. Pois enquanto duas pessoas podem ter sensações opostas, uma percebendo o vento como quente, a outra como frio, e essas duas qualidades estão em pé de igualdade quanto à sua verdade, contudo não estão em pé de igualdade quanto ao seu valor. Como deixa claro a citação de Sexto, uma percepção será a de um homem num estado natural ou saudável, e o uso do termo "estado natural" implica que essa percepção será, por conseguinte, preferível à outra percepção ocorrida, por exem- [185] plo, em caso de uma doença ou de um estado não-natural de quem percebe.

Que Protágoras reduz a realidade à realidade perceptível pelos sentidos, vê-se não só na última sentença do relato de Sexto Empírico que acaba de ser citada, mas também na interessante afirmação preservada por Aristóteles na Metafísica B (DK 80B7) onde ele diz:

 

Não é verdade que a medida da terra trata com magnitudes perceptíveis e perecíveis; porque, então, ela teria perecido quando elas pereceram. E da mesma forma não se dirá que a astronomia trata com magnitudes perceptíveis, nem com este céu acima de nós. Porque linhas perceptíveis não são o tipo de linhas de que fala o geômetra, pois nenhuma coisa perceptível é reta ou redonda da maneira como ele fala do reto e do redondo. Pois um círculo perceptível não toca a reta em um ponto, mas a toca da forma como Protágoras costumava dizer que toca, na sua refutação dos geômetras.

 

Em outras palavras, segundo Protágoras, a tangente toca um círculo não em um ponto geométrico, mas da forma como o faz no mundo visível, que é sobre um segmento de uma certa dimensão. Simplício (DK 29A29) preserva o que parece ser uma passagem de um diálogo entre Zenão e Protágoras. Não importa, para a nossa finalidade, saber se o diálogo é inteiramente fictício, como é provável que seja, visto que certamente apresenta uma correta aplicação da doutrina de Protágoras. Zenão pergunta a Protágoras se um único grão de painço ou a décima milésima parte de um grão de painço produz algum som ao cair. Protágoras responde que não, mas admite [184] que um alqueire (medimnos) de sementes de painço produz som. Zenão então conclui que um único grão deve produzir uma fração adequada do som produzido pelo alqueire. O ponto importante, aqui, no que concerne a Zenão, pode bem estar relacionado com o problema dos infinitesimais. Mas para Protágoras o importante é muito mais provável que tenha sido simplesmente a negação de sons não ouvidos, isto é, a negação de qualquer outra coisa que não sejam sons que são fenômenos reais porque são audíveis. Pelo menos neste ponto ele teve Aristóteles do seu lado, o qual argumentou que não havia razão pela qual essa parte do alqueire não devesse, não importa por que lapso de tempo, simplesmente deixar de mover o ar que o alqueire todo move ao cair.

A doutrina segundo a qual não há outras entidades além das entidades perceptíveis pelos sentidos envolve a negação de que haja quaisquer objetos não-fenomenais para o entendimento. Assim, nos é dito, por Diógenes Laércio, no seu sumário das doutrinas de Protágoras, que Protágoras deixou de lado a dianoia ("entendimento", aqui presumivelmente no sentido da significação ou sentido da palavra) e só deu atenção à enunciação, ou nome, o onoma (IX, 52 = DK80A1). Mas, se não há nenhum objeto para o entendimento, então, poder-se-ia argumentar, o entendimento não tem nenhuma função distinta na alma. E é esta presumivelmente a explicação para a notável afirmação feita por Diógenes Laércio, no parágrafo imediatamente precedente ao que acabamos de citar, de que a alma não era nada separada de suas sensações. Sabemos que Protágoras tinha uma doutrina física da alma e que a situava no peito (DK80A18), de modo que é improvável [187] que ele quisesse dizer que a alma não tinha existência à parte do conteúdo de suas sensações. Antes, é provável que ele quisesse dizer que ela não tinha função a desempenhar à parte dessa de perceber, uma doutrina que aparentemente se encontra também em Demócrito (DK 68A112) e, subsequentemente, em Estrato e Enesídemo, embora eles identificassem entendimento com percepção e não negassem a existência da inteligência (Sexto Empírico, Adv. Mathematicos VII,350). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 143-187).

 

Doutrina Untersteiner:

 

"O homem é dominador de todas as experiências, em relação à fenomenalidade do que é real e a nenhuma fenomenalidade do que está privado de realidade". (Fonte: A obra dos sofistas: uma interpretação filosófica, Mario Untersteiner, tradução: Renato Ambrósio, Paulus, São Paulo, 2012, p. 78).

 

 

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