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41.76 - Da Filosofia à Literatura.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.76 - Da Filosofia à Literatura.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

III.1. “Fala, se tu és homem”, ou a exclusão transcendental (*)

 

Aqueles que se colocam a questão de saber se é preciso ou não honrar os deuses e amar seus pais só têm necessidade de uma boa correção, e aqueles que se perguntam se a neve é branca ou não têm apenas que olhar. Aristóteles, Tópicos, I, 105a 5-7.

 

Como a ética chega à linguagem? A resposta, desde Aristóteles hoje seria: com a exigência de sentido. A mesma estrutura: sentido, consenso, exclusão, só faria se repetir, desde a cena originária erguida por Aristóteles no livro Gama da sua Metafísica, como máquina de guerra contra os sofistas, semelhantes a plantas, esses pseudo-homens que pretendem falar por (prazer de) falar; até as filosofias do consenso, as éticas da comunicação, as pragmáticas da conversação: Apel, Habermas, Rorty, cujas exigências decrescentes tropeçam entretanto no mesmo tipo de maus outros, os que devem ser excluídos, que devem ser levados a se excluírem da humanidade. Assim o sentido, compreendido como exigência transcendental, quer dizer, como condição de possibilidade da linguagem humana, se sustenta, e só se sustenta, por uma exclusão não menos transcendental do que a própria exigência. Ou, simplesmente, o senso comum, para ser tanto senso quanto comum, produz não-sentido, insensatos, e não-comum, inumano.

 

A cena originária

 

Aristóteles acaba de enunciar o primeiro princípio da ciência do ser enquanto ser [Osório diz: o princípio de não-contradição], que passou à posteridade com o nome de princípio de não-contradição. Um tal princípio, "o mais firme de todos", é ao mesmo tempo "o mais conhecido" e, como o Bem de Platão, "não depende de mais nada" (Metafísica, Gama, 3, 1005b 13-14). Há, entretanto, aqueles que o recusam, afirmando, e afirmando defender, "que é possível que o mesmo seja e não seja" (4, 1005b 35 — 1006a I): esses mal-educados obrigam Aristóteles a demonstrar um princípio que é entretanto duas vezes não demonstrável, porque formalmente primeiro e porque contém a possibilidade mesma de todas as demonstrações.

 

(…)

 

Toda essa refutação consiste em uma série de equivalências (|iic faz passar de "dizer alguma coisa" (1006a 13, 22) a "signi-flnir alguma coisa para si mesmo e para outrem" (1006a 21). Mediante isso, a intimação a falar (diga: "Bom dia") pode servir Ur arma absoluta: ou bem o adversário se cala, renuncia com isso n satisfazer o caráter específico do homem que é o de ser dotado de fala, e não conta nem como adversário nem mesmo como alter ego; ou bem ele fala, logo significa, e renuncia, com isso, à possibilidade de negar o princípio, pois o princípio de não-contradição se prova e se instaura pelo único fato de que é impossível que o mesmo (vocábulo) simultaneamente tenha e não tenha o mesmo (sentido). O sentido é então a primeira entidade encontrada e encontrável que não pode tolerar a contradição. A refutação que serve de demonstração ao princípio de não-contradição implica, se não que o mundo é estruturado como uma linguagem, ao menos que o ente é feito como um sentido.

Na explicitação dessa única resposta encontram-se reunidos dois traços. Primeiramente, "do essencial concernente ao ente enquanto tal: a saber, que qualquer ausência permanece estranha à presença" (p. 467), ou, em outros termos, que "a essência do ente consiste na constante ausência de qualquer contradição" (p. 468). Mas também do essencial concernente ao homem, pois não falta ao homem que se contradiz apenas o ente, ele se falta a si mesmo: "Ao sabor de afirmações contraditórias que o homem é capaz de produzir à vontade acerca de uma só e mesma coisa, ele mesmo sai da sua própria essência para entrar na não-essência: rompe toda relação com o ente enquanto tal" (p. 468).

Acrescentemos que o próprio paradigma da "tagarelice" como primeira modalidade da queda própria ao Dasein", é o colóquio, “Onde se crê que do acúmulo das más compreensões resultará uma compreensão"2. A litania dos Ver- (Verdeckung, “recobrimento”; Verstellen, "desfiguração"; Verkehrung, "perversão” Verfallen, "decadência"), evoca inevitavelmente o pseûdos sofístico: "A sofística antiga não era em sua estrutura essencial outra coisa, mesmo se fosse talvez sobre muitos pontos mais sagaz” (Prolegomena, p. 377).

Mesmo diagnóstico então, e mesma condenação, se Heidegger não fosse mais cristão do que Aristóteles: fracasso, queda, inautenticdade, não fazem do homem que pretende sustentar a contradição uma planta, mas ainda e sempre um homem, cuja essência é, por essência, igualmente não-essência. Essa inteligência da diferença faz assim da diferença uma autodiferença própria a cada homem enquanto homem, antes que uma diferença entre os homens. As filosofias do consenso não poderiam ter essa prudência ao menos teórica.

 

A reiteração da estrutura em K.O. Apel

 

Apel, Habermas, e sem dúvida finalmente Rorty, têm em comum o fato de querer salvar a ética do irracionalismo, quando a autonomia kantiana parece não ser mais aí suficiente;

 

1) A problematização da noção de fundação última:

 

O double-bind da fundação última é o que se deve ao mesmo tempo fundar e cessar de fundar. O trilema de Münchausen nos deixa a escolha entre uma regressão ao infinito, um círculo lógico, ou uma interrupção não fundada do processo de fundação. Apel reconhece de bom grado que Aristóteles estava consciente da aporia: na medida mesma em que o princípio de não-contradição não pode ser nem contestado sem autocontradição nem fundado, sem petição de princípio, "a fundação do princípio de não-contradição por Aristóteles pôde servir de ilustração ao problema clássico da fundação última".

Aristóteles deve passar mesmos pelo iniciador do “sofisma de abstração”.

Ora a nossos olhos de leitores menos tradicionais de Gama, trata-se aí, precisamente, do procedimento aristotélico. Vimos Aristóteles substituir a demonstração impossível por uma refutação, cuja única condição, necessária e suficiente, é que o adversário fale/diga alguma coisa/signifique alguma coisa para ele mesmo e para outrem. É na univocidade constitutiva do sentido, o “alguma coisa”, que reside a petição do princípio, inevitável desse ver no sentido de que nenhum homem pode evitá-la. O golpe de Aristóteles consiste então, por um passo atrás, que podemos muito adequadamente designar como busca transcendental das condições de possibilidade do lógos humano, em fazer do próprio elemento da controvérsia um terreno que lhe é antecipadamente ganho: sinnvollen Reden ou Argumentieren é légeln ti, nidinein ti hautôi kaï allôi.

 

3) A administração da prova:

 

Os adversários, tanto para Apel quanto para Aristóteles, não se contradizem em um plano somente lógico-formal, nem somente pragmático-empírico. Quando Apel argumenta contra o decisionismo de Popper, para quem "o irracionalismo pode ser sustentado sem contradição porque podemos recusar aceitar argumentos", reencontra a refutação aristotélica em seu mecanismo específico: as regras do jogo de linguagem transcendental são “regras cuja validade já foi sempre implicitamente reconhecida” (Crítica, p. 926s.), ou, como diz Aristóteles: "Para destruir o lógos é absolutamente necessário que se tenha um lógos" (Gama, 4, 1006 a 26).

 

4) Relação à universalidade e estatuto da exceção:

 

Ao meu lado, e de todos os outros eus que são os animais dotados de lógos, discernem-se tanto em Apel quanto em Aristóteles duas categorias de maus outros: o mau outro assimilável e o mau outro radical. Assimilável é aquele que, dizendo bem o que quer, se conforma entretanto à obrigação de "sustentar seu discurso" (hypéchein lógon, Gama, 6, 1011 a 22), pois, de facto, pertence à comunidade daqueles que significam e que argumentam. É o "diabo" da Ética na era da ciência, que, contrariamente ao que se crê, não constitui uma exceção ao universal; com efeito, pode-se bem objetar contra a universalidade do fundamento a ético que

 

Dito de outra forma, a vontade má de dizer o falso e de enganar, o egoísmo do diabo ou do sofista, já estão, para que funcionem, sempre presos à universalidade do sentido.

Recurso ao sentido como condição transcendental do lógos, oração do sentido em consenso ("para si e para um outro"), passagem ao universal por redução das exceções a esse nada positivo que é a inumanidade: a estrutura do consenso filosófico, aristotélico-apeliano, prende-se inteiramente à problemática do sentido. "O sentido e o não-sentido têm uma relação que não pode ser decalcada sobre a relação do verdadeiro e do falso" 6: não existe contrário do sentido; o sentido é feito de tal forma que alguma coisa ou bem tem sentido ou bem não é que alguém ou bem é um agente sensato ou bem não é um homem.

 

A questão do cotidiano para Habermas

 

Habermas, em seguida Rorty, acabam por aceitar, cada um à sua maneira, a exigência do transcendental na origem do consenso. O passo atrás que realiza muito explicitamente Habermas em sua crítica de Apel consiste em recusar-se a ver, nas regras do jogo de linguagem transcendental, um fundamento 7: se o sentido e o consenso tornam-se uma exigência, é simplesmente porque não existe regra de substituição; eles só podem ser reconhecidos, obtidos, pela e na discussão.

 

O fato de que a "clareza" da metáfora esteja ligada ao suplemento de conhecimento que ela produz, torna-se ainda mais manifesto, considerando o que o livro III, capítulo 10, da Retórica nomeia tá asteia, "os ditos engenhosos" — formado a partir de hástu, "a cidade" —, quer dizer, ao mesmo tempo, o que corre as ruas e o que, como a dóxa, constitui o mundo comum. A seu propósito se efetua, primeiramente, uma das retomadas mais marcantes das primeiras linhas da Metafísica: "Todos os homens desejam naturalmente saber. Um sinal disso é o prazer tido com as sensações. Elas agradam por elas mesmas, independente da necessidade, e sobretudo as que nos vêm dos olhos". "Aprender facilmente dá naturalmente prazer a todos os homens; ora, as palavras significam alguma coisa, de forma que todas as palavras que produzem um ensinamento para nós são as mais agradáveis" (1410b 10-12). O eco se confirma quando se compreende por que o dito engenhoso é, por assim dizer, o nec plus ultra da metáfora: é uma metáfora por analogia, que tem além disso a virtude de "colocar diante dos olhos". Ora, prossegue a Retórica, "é a metáfora que melhor produz esse ensinamento; pois, quando se diz que a velhice é uma haste de colmo, isso produz um ensinamento e um conhecimento através do gênero; pois um e outro são desflorescidos" (14-16). E em todo o corpus, para nós tão pouco natural, dessas metáforas por analogia que são os ditos engenhosos retidos por Aristóteles; volta como um leit-motiv que elas são também prò ommáton, ou seja como se traduz às vezes, que "criam um quadro".

Aristóteles precisa, no capítulo seguinte, o sentido dessa expressão: "Digo que as palavras colocam diante dos olhos as coisas a cada vez que elas as significam em ato" (hósa energoünta semaínei, 1411b24s.). Os exemplos mais extremos são tirados de Homero, que diz em ato não somente os seres animados, mas chega a animar o próprio inanimado: "'as vagas abauladas, galeadas de espuma, umas à frente, outras atrás' — essas palavras transformam tudo em movimento e em vida, e o movimento é o ato" (141a9s.). Já que a enérgeia, o "ato", é, como nos ensinam a Metafísica e a Física, o que há de mais ente para Aristóteles, ao mesmo tempo ser do ente e ente por excelência, deus mesmo, é preciso convir que a metáfora, em sua melhor forma, faz ver as coisas em seu máximo de ser, faz com que se assemelhem ao que são.

(…)

 

O sofista e a má metáfora

 

Bem antes de Aristóteles, é a sofística que elabora a primeira retórica: "Górgias foi o primeiro a dar ao gênero retórico sua força educativa e sua técnica de expressão, utilizou tropos, metáforas, alegorias, hipálages, catacreses, hipérbatos, repetições, retomadas, reviravoltas e correspondências sonoras" (Suidas = I) K., II, p. 272, 28-31). Mesmo se o testemunho é tardio, é certo que essa retórica siciliana, que utiliza não somente as figuras de sentido mas joga com os próprios significantes, é uma trópica generalizada, para a qual a metáfora só representa um tropo dentre muitos outros.

Assim, é preciso não interpretar erroneamente a estranha objeção que Aristóteles, nesse mesmo livro III da Retórica, faz ao estilo de Górgias. É com efeito na "frieza" das metáforas que reside seu principal defeito; "frio", psychrós, se diz dos cadáveres: o estilo de Górgias é um estilo sem vida, a morte do estilo. Mas isso significa, muito precisamente, que Górgias prejudica a "clareza" das metáforas: "falta-lhes clareza quando elas vêm de muito longe" (asapheïs dê, àn pórrothen, 1496b8s., cl 140a35); "coisas frescas e sangrentas" ou "semeastes na vergonha, colherás na infelicidade", eis o que é dito poeticamente demais”. Esse excesso metafórico equivale ao acúmulo de metáforas que a Poética designa sob o nome de "enigma": compor exclusivamente com metáforas permite dizer "coisas reais através de associações impossíveis", por exemplo, "vi um homem aderir bronze sobre um homem com fogo" para falar da colocação de uma ventosa (Poética, 22, 1058a 25-30 e Retórica, III, 2, 140a i-l I405b5). Assim, Górgias o estrangeiro vai procurar longe demais o que deveria se contentar em pegar muito perto e, praticando a metáfora pela metáfora, os tropos pelos tropos, como ele fala pelo prazer de falar, faz desaparecer, com a clareza, a percepção do próprio e do comum. Poder-se-ia retomar aqui a análise de Jacques Derrida em A mitologia branca: a metáfora corre o risco de interromper a plenitude semântica à qual devia pertencer. Mediante o momento da virada ou do desvio, durante o qual o sentido pode parecer se aventurar sozinho, desligado da própria coisa que entretanto ele visa, da verdade que o prende a seu referente, a metáfora abre também a errância do semântico" 11, mas para marcar que é a sofística que constitui e que realiza, aos olhos da própria filosofia, esse risco da filosofia.

 

A ékphrasis: da palavra à palavra

 

A clareza do estilo fenomenológico, que deixa ser dito aquilo que se vê, acresce-se da clareza da metáfora, que torna visível o invisível. A isso se opõe o estilo logológico, onde não se cessa de fazer isso por demais. O acúmulo dos tropos, que o caracteriza, parece-me dever se cristalizar ulteriormente em uma figura mais vasta, tão mal conhecida pelos filósofos: a ékphrasis. Como a epídeixis, o próprio termo de ékphrasis conota uma exaustão, a insolência do "até o extremo": é um ato de dispor em frases que esgota seu objeto e designa terminologicamente as descrições, minuciosas e completas, que são dadas das obras de arte.

A primeira,e sem dúvida a mais célebre, ékphrasis conhecida é a que Homero dá, no final do canto XVIII da Ilíada, do escudo de Aquiles forjado por Hefesto. A arma foi fabricada a pedido de Tétis, não para permitir a seu filho de resistir à morte, mas para que "todos fiquem maravilhados" (466s.) quando o destino o alcançar. Lembramo-nos de que é uma obra cosmo-política, onde são representados, não apenas Terra, Céu, Mar, bordejados pelo rio Oceano, mas duas cidades nas minúcias de suas vidas, uma em paz e a outra em guerra. O poeta cego não omite nada do que o deus aí coloca, não omite absolutamente nada, e produz a primeira síntese do mundo dos mortais, provando assim, pela primeira vez, que a poesia é mais filosófica do que a história. [Osório diz: Escudo de Aquiles / Destino]

Não somente essa ékphrasis primeira é a descrição de um objeto fictício, como também é seguida no tempo por uma segunda ékphrasis, cujo modelo é dessa vez, como para um remake, a primeira ékphrasis ela mesma: trata-se do escudo de Héracles atribuído a Hesíodo. Esse palimpsesto não se conforma então a um fenômeno, um escudo real, por outro lado, à própria natureza e às cidades, mas somente a um lógos. Nesse objeto transido de cultura, perde-se, com a referência natural, o que Aristóteles teria nomeado vida da narrativa. Como observa Paul Mazon, com os julgamentos de valor esperados: "Em tudo isso, nenhum gesto então que seja verdadeiramente 'visto', que dê a sensação da vida. Tampouco nenhuma palavra na boca dos personagens que torne um som franco e claro: todos falam uma linguagem de pura convenção" 12. Inclusive as próprias metáforas que são mortas, já que, ao invés de as vagas se perseguirem como guerreiros, são dessa vez os guerreiros que rolam como pedras (374-379). O ut pictura poesis da metáfora "como um quadro” toma assim um sentido completamente diferente: não se trata mais de imitar a pintura na medida em que ela procura colocar o objeto diante dos olhos — pintar o objeto —, mas de a pintura enquanto arte mimética — pintar a pintura. Imitar a imitação, produzir um conhecimento, não do objeto, mas da ficção do objeto, da objetivação: a ékphrasis logológica é literutura.

De fato, o destino da ékphrasis está ligado ao do romance. Não retornarei as análises através das quais tentei mostrar como a segunda sofística, mais de seis séculos após a primeira, desenvolve, com a ficção, esse pseûdos por meio do qual a filosofia de Platão e de Aristóteles caracterizou para sempre a primeira sofística 13. O que me interessa aqui é somente a maneira pela qual o estilo da ficção é obnubilado pela ékphrasis, exatamente como o estilo da fenomenologia o é pela metáfora.

 

(…)

 

Assim em As aventuras de Leucipo e Clitofonte de Aquiles Tácio.

 

Na ilha de Lesbos, caçando em um bosque consagrado às Ninfas, vi a mais bela coisa que já vi em minha vida: uma imagem pintada, uma história de amor. Também era belo esse bosque com árvores frondosas, com flores e riachos; uma única fonte alimentava tudo, flores e árvores. Mas a pintura tinha mais charme, plena de uma arte extraordinária e de uma aventura de amor. Assim muitas pessoas, mesmo estrangeiros, vinham, atraídos pelos rumores, adorar as ninfas, contemplar a imagem. Nesta, mulheres dando à luz, outras que enfaixam recém-nascidos, crianças expostas, animais que alimentam, pastores que recolhem, jovens que trocam juramentos, um ataque de piratas, uma invasão de inimigos. Vendo muitas outras coisas, todas plenas de amor, e me maravilhando com elas, tomou-me o desejo de replicar ao quadro. Tendo acabado por encontrar um exegeta da imagem, compus quatro livros, uma oferenda para o Amor, as Ninfas e Pan, um bem para encantar todos os homens, que curará o doente, consolará o aflito, fará recordar-se aquele que amou e preparar-se aquele que não amou. Pois ninguém jamais escapou ou escapará ao amor, enquanto a beleza existir e os olhos enxergarem. Permita-nos o deus, mesmos sensatos, escrever os amores dos outros (1-4).

A natureza nessa narrativa é menos bela do que a pintura (“a mais bela coisa"/"belo também"). Somente a pintura, em seguida a narrativa que é sua exegese, têm o poder de "encantar" (terpnotéra, terpnón), de enlevar como a música de Orfeu. Da mesma forma, é apenas a imagem que é "contemplada".

(L'Ekphrasis[1] (o anche ècfrasi, ecphrasis o ècfrasis) è un termine di derivazione greca (ἔκϕρασις: derivato di ἐκϕράζω «descrivere con eleganza», da ἐκ «fuori» e ϕράζω «parlare; designare un oggetto inanimato con un nome») e indica la descrizione verbale di un'opera d'arte visiva, come ad esempio un quadro, una scultura o un'opera architettonica.///////////////////////////

A écfrase consiste no processo descritivo detalhado por meio do qual se pode produzir um “quadro” do objeto da descrição. A enargia pode ser considerada uma figura de pensamento cuja finalidade é conferir vivacidade à imagem verbal. A écfrase não é o único procedimento capaz de gerar essa enargia, conforme será exposto; contudo, nos desperta o interesse em razão de seu histórico, frequentemente associado à construção de imagens que, por sua vez, representam objetos inexistentes de maneira absolutamente crível.

A enargia ou evidência como figura de pensamento está estruturada retoricamente na elocução. Sabe-se que a elocução é uma etapa importante da composição, pois nela se modela o texto de acordo com o público a que se pretende atingir e está, portanto, relacionada à persuasão desse público. Logo, a elocução serve a outras etapas da composição retórica – a invenção e a disposição. Ou seja, da mesma maneira que a poesia deve estruturar suas partes para resultarem um todo coerente, o discurso retórico também deve fazê-lo. Assim, as diferentes fases do discurso não são estanques.

Compreende-se que a écfrase ou enargia, ainda que ornamentos da elocução, servem também aos propósitos da invenção e da disposição – etapas que, logicamente, faziam parte do trabalho da composição poética. Portanto, supõe-se que a evidência não esteja inserida como mero ornamento, mas tenha uma finalidade própria dentro do conjunto.

Por ora, pode-se dizer que ambas se relacionam ao gênero epidítico (ou demonstrativo) – gênero voltado para o elogio ou o vitupério de um indivíduo e que requer meios de amplificação para reforçar as características (qualidades ou defeitos) atribuídas a ele. A evidência consiste também na prática do retrato, pois permite ao leitor/ouvinte visualizar um retrato do objeto detalhado.

A écfrase também se insere no discurso epidítico, pois é um método da amplificação. No entanto o discurso ganha dimensão pois combina a descrição com a narração. Embora possam se apresentar como digressões dentro da estrutura do texto, são fundamentais para corroborar com o propósito do autor, pois ambas operam a amplificação, que, por sua vez, constitui um recurso patético da argumentação, comovendo e deleitando o público de modo a tornar o discurso mais verossímil.)

Ora, esse quadro que a ékphrasis descreve já é uma narrativa "uma imagem pintada, uma história de amor, plena de uma arte extraordinária e de uma aventura de amor". A violência da parataxe inverte o ut pictura poesis: não é a poesia que coloca diante dos olhos, é a pintura que faz ouvir. Contemplar é dar ouvidos.

Além disso, essa narrativa que é a pintura é estritamente anti ou a-fenomenológica, no sentido heideggeriano-aristotélico do termo. Ela não faz nada "ver-como" e desafia toda sintaxe, nenhuma semelhança, nem epistemológica nem metafórica, pode ser elaborada aí. Tudo que se vê é o que o discurso diz em uma pnrataxe arrebatada: sujeitos agindo e cada sujeito, sem modi¬ficação e sem predicado, comprometido com seu ato. E as mu¬lheres dando à luz, os pastores recolhendo, as jovens prometendo, " inimigos invadindo. . .

 

(…)

 

Nesse prólogo, nesse romance, com a ékphrasis, não se trata mais de ter olhos para ver e viver o fenômeno, mas olhos para fazer frases, olhos para escrever e para ler: olhos para enganar.

Plutarco, em seu Se os atenienses foram mais excelentes nas armas do que nas letras (V, 384c = 82 B 23D.K., II, p. 305s.), relembra uma frase célebre de Górgias:

A tragédia era florescente e celebrada: era para os homens de então o que se podia ver e o que se podia ouvir de mais espantoso e conferia aos mitos e às paixões a ilusão segundo a qual, como diz Górgias, "aquele que ilude é mais justo do que aquele que não ilude, e aquele que é iludido mais sábio do que aquele que não é iludido. Com efeito, aquele que ilude é mais justo porque realiza o que prometeu, e aquele que é iludido mais sábio, pois ser facilmente enleado pelo prazer dos discursos é não ser privado de sensibilidade".

Com a sofística, é a apáte, a "ilusão", simultaneamente engano e sedução, que se encontra ligada, não somente à justiça e à sabedoria, porém, mais radicalmente ainda, à aísthesis, a essa sensibilidade" mesma que caracteriza a abertura fenomenológica. É no lugar da sensibilidade ao fenômeno que se trata de instalar a sensibilidade ao prazer de falar. René Char exigia "a honra cruel de enganar": é com a lucidez literária e política desse engano discursivo que gostaria de concluir.

 

III.3. Do falso e da mentira à ficção: de pseûdos a plasma

 

(…)

 

A primeira sofística perdeu a guerra filosófica. É, sabemos, em nome da verdade que a sofística foi de início e sempre condenada: a acusação principal lançada por Platão bem como por Aristóteles se deixa consignar no termo pseúdos. Pseúdos objetivo, o "falso": o sofista diz o que não é, o não-ser, e o que não é verdadeiramente ente, os fenômenos, as aparências. Pseúdos subjetivo, a "mentira": ele diz o falso com a intenção enganar, utilizando, para obter um êxito rentável, todos os recursos do lógos — ao mesmo tempo lingüístico (homonímia dos termos), lógico (raciocínio falso, sofisma) e racional propriamente dito (inaptidão para o cálculo e para a estratégia, tolice do outro). Logo de saída então, no Sofista como em Metafísica Gama 2, a sofística é uma pseudofilosofia: filosofia das aparências e aparência da filosofia. [Osório dia: como Platão e Aristóteles veem a Sofistica].

Mas, de Platão a Aristóteles, a acusação provê sua eficácia de modo bem diferente. Em Platão, a desqualificação depende do parricídio de Parmênides, desse momento em que o Estrangeiro mostra - fazendo voltar à cena e, com isso, desfazendo-o, O Tratado do não-ser de Górgias — que na verdade a posição parmenideana é insustentável. O pai contradiz a si mesmo pelo único fato de enunciar a lei ontológica "o não-ser não é" (uma primeira vez, pela enunciação do termo, sua posição em uma frase; uma segunda vez, pelo plural, me ónta no verso escolhido, que faz participar da quantidade; logo, do ser). Tomar o pai ao pé da letra, quer dizer, tornar essa contradição manifesta, isso é matá-lo. É preciso escolher o espírito contra a letra e aceitar que o não-ser seja de algum modo, entre outros justamente, entre outros gêneros, para fundar a possibilidade de que se possa dizê-lo e pensá-lo, mentir e se enganar. Somente assim se pode refutar esse filho amoroso demais ou irônico demais que lhe jogava a letra contra a letra sem querer sair disso: o sofista. O sofista é assim encontrado, capturado em sua semelhança/diferença, cão/lobo, com o filósofo, mas ainda não excluído da cena.

A exclusão propriamente dita é feita com Aristóteles, com o "golpe de Aristóteles". Esse golpe consiste em tornar equivalente "dizer" ou "falar" e "significar alguma coisa" (légein e semaínein ti), por ocasião do estabelecimento do que será o princípio de não-contradição. Ele permite isolar e marginalizar uma posição irredutível: aqueles que não são acessíveis à persuasão, mas somente à coação, à violência. Os sofistas não são mais apenas esses pseudofilósofos que, sob o golpe de uma aporia, se deixam prender e prendem os outros na rede das aparências sensíveis e discursivas, os físicos e os poetas, de Parmênides e Heráclito a Homero e a Empédocles; são esses pseudo-homens (plantas, deuses?) que falam sem significar alguma coisa que tenha um sentido para eles mesmos e para outrem, que falam então sem nada dizer e mesmo com a intenção de dizer nada, para nada dizer ou "pelo prazer de falar": lógou chárin.

É, creio, fundamental, para tentar responder à questão "O que é a sofística?", apreender toda a dimensão da exclusão aristotélica: sob o regime do "falar de" maciçamente semântico, que é normalmente o nosso, sob o qual falamos e escrevemos aqui como em toda parte, é evidente que falar de nada equivale a não falar. Para Aristóteles, o sofista faz verdadeiramente muito ruído com sua boca, muito ruído para nada, e os sofismas que o procedimento de distinção das significações empregado nas Refutações sofísticas não chega a reduzir, aqueles que abusam desse refúgio inexpugnável que não é dessa vez como em Platão o não-ser, mas a materialidade significante da linguagem, podem interessar à embriaguez dos finais de banquete, não à filosofia.

Para se refazer um ouvido e, se não para reabilitar, ao menos para ouvir novamente a sofística, não pode então ser suficiente permanecer na problemática platônica e valorizar positivamente a preocupação com a racionalidade que opera na descrição das irracionalidades aparentes, sensíveis ou lógicas, caras aos sofistas. A esse respeito, é fundamental notar com G. B. Kerferd que toda as reabilitações filosóficas propostas, até Heidegger inclusive, são essencialmente platônicas: consistem em valorizar, em atribuir um valor positivo ao que Platão desvaloriza. A virada é rapidamente feita. No plano teórico os sofistas tratam do não-ser e dos fenômenos ou dos acidentes, o que os entrega ao sensualismo e à subjetividade; Hegel, em suas Lições sobre a história da filosofia, mostra como Górgias tem logicamente razão em insistir sobre o não-ser do ser e como Protágoras inaugura a reflexão na consciência. No plano prático, os sofistas platônicos são imorais, preferindo o poder e o dinheiro; Nietzsche, invertendo os valores, faz o elogio de Cálicles e Hegel os nomeia "os mestres da Grécia", no plano não apenas da pedagogia e da cultura, mas também, como Grote, no plano político da democracia.

A arte e a maneira de não ser platônico, ao menos para o filósofo, o crítico ou o historiador que reflete sobre a sofística, seria a de não permanecer nas desvalorizações propostas por Platão, tampouco nas valorizações dessas desvalorizações — um contratorpedeiro sendo, como dizia Jean Beaufret, de início e antes de tudo um torpedeiro. É preciso, creio, levar em conta agora aquilo que, na posição aristotélica a respeito dos sofistas não é uma simples retomada, a repetição em um outro glossário da posição platônica; ler, sob a censura aristotélica do lógou Charin, a possibilidade de uma positividade diferentemente específica da sofística e se perguntar que tipo de discurso se instaura, e qual é seu interesse, quando se fala para nada dizer.

Vou tentar propor uma resposta a essa questão, a partir de alguns textos da primeira e da segunda sofística. Mas, de início, uma observação preliminar: necessita-se infinitamente de prudência, de tato, no manuseio desses textos. As objeções de Platão e de Aristóteles que são às vezes as únicas fontes que temos para a primeira sofística, dispõem os textos e as problemáticas originais em função dos seus próprios: como diz Élio Aristides, por que deixaríamos Platão sozinho escolher os argumentos que se opõem a Platão? Se deixamos Platão refutar Platão, como Platão não refutaria aqueles que refutam Platão? Por sua vez, os textos da segunda sofística conhecem as refutações de Platão e de Aristóteles e dispõem sua própria problemática, e sua retomada das problemáticas da primeira sofística, para refutar essas refutações. Trata-se verdadeiramente, como em todo objeto cultural — e a sofística o é em seu mais alto grau — de um palimpsesto e de um palimpsesto de palimpsesto. [Osório diz: luta-se com as armas que o adversário fornece].

A resposta que irei propor tem um duplo encaminhamento. O primeiro momento nos faz mover, como previsto, no campo retórico como médium comum às duas sofísticas; ele nos fará talvez reconsiderar o sentido, o valor ou a localização desse conceito entre sofística e filosofia, mas em todo caso legitima maciçamente a assimilação sofísticas-retórica (sofísticas com um "s") que funciona como contragolpe eficaz à apreciação filosófica desde Platão até Gomperz e Bowersock. O segundo momento quereria levar mais adiante as particularidades da retórica sofística, as implicações filosóficas propriamente ditas do estatuto sofístico da linguagem, para medir a força e a pertinência da resistência da sofística à filosofia — a arte e a maneira de não ser nem platônico nem aristotélico — e sua potência criadora: como escrever fora da filosofia sem ser nem poeta nem historiador? A sofística ter-nos-á assim transportado da acusação de pseúdos lançada contra ela pela filosofia, e de onde partimos, à reivindicação de plásma, a força ficcional própria à literatura. [Osório diz: plásma = dar forma. Vide p. 267].

Como se pode então falar para nada dizer?

Primeira resposta: basta não falar de, mas falar para. Não se ocupar daquilo de que se fala, da physis, do kósmos, do ente, mas se ocupar daquele para quem se fala, do efeito ad hominem. De um lado então, conhecer tendo como fim o verdadeiro; do outro, persuadir tendo como fim o útil e o eficaz. À direita o filósofo, à esquerda o orador.

Não tenho nem tempo nem os meios de utilizar o termo retórica com todas as precauções que sua história requer. Marcarei simplesmente as modalidades da relação entre retórica e primeira sofística como ponto de partida, retórica e segunda sofística como ponto de chegada, especificando a cada vez a posição da filosofia.

Ponto de partida então, o que os sofistas do século V dizem ou o que se diz que eles dizem do discurso, e do discurso tal como o praticam.

O discurso está para a alma assim como o phármakon, a droga, remédio/veneno, está para o corpo: ele induz uma mudança de estado, para o melhor ou para pior. Elogio de Helena, 14:

Existe a mesma relação (lógos) entre a força do lógos em relação à ordenação da alma e a ordenação das drogas em relação à natureza dos corpos; pois assim como certas drogas eliminam do corpo certos humores e dão fim, algumas à doença, outras à vida, também, entre os discursos, uns acalmam, outros encantam, aterrorizam, excitam a coragem dos ouvintes, ou ainda, por uma persuasão nefasta, drogam a alma e a enfeitiçam.

O sofista, como o médico, sabe utilizar o phármakon e pode transmitir esse saber; sabe e ensina como fazer passar, não, segundo a bivalência do princípio de contradição, do erro à verdade ou da ignorância à sabedoria, mas, segundo a pluralidade inerente ao comparativo, de um estado menos bom a um estado melhor. Protágoras o afirma pela boca de Sócrates, que o defende: "É de uma disposição à disposição que vale mais que deve se fazer a passagem, mas o médico produz essa passagem' pelas drogas, o sofista pelos discursos" (Teeteto, 167a).

Vê-se bem como tais textos autorizam a fazer da sofística, por mais belos e positivos que sejam, uma prática ao mesmo tempo utilitarista e behaviorista da linguagem, mais próxima da retórica do que da filosofia. Uma vez determinado o melhor pelo cálculo do útil e a difícil ponderação das utilidades privadas e públicas, trata-se de saber que palavras reunir e em que ordem para que a alma do outro ou dos outros sofra, graças a esses stimuli, a emoção exigida.

Mas a filosofia recusa à sofística não somente ser filosofia, mas mesmo ser inteiramente retórica, arrogando-se ela mesma a retórica. [Osório diz: a-retórica? Não-retórica?]

Os textos sofísticos ou pró-sofísticos que acabo de citar contêm, com efeito, em germe, as duas críticas que a filosofia dirige à sofística como retórica. O problema da intenção: o que garante que o sofista se utilize seriamente de seu phármakon, como remédio e não como veneno, que ela seja um médico que queira curar seu doente? E o problema da téchne: o que garante que o sofista seja um médico e não curandeiro, como um savoir-faire científico (téchne ou episteme) e não simplesmente empírico?

Esses dois critérios se reúnem na acusação de "adulação" do Górgias. Levando em consideração a famosa analogia (465c), o sofista valeria finalmente mais do que o orador, já que a retórica é da ordem de justiça ou da medicina, quer dizer, do corretivo acidental, enquanto a sofística é o análogo da legislação ou da ginástica, quer dizer, do normativo estruturante — mas certamente tanto uma quanto a outra devem ser levadas para o lado da adulação, da empiria chamativa, cozinha e cosmética. No Fedro, a retórica pode dar em coisa ruim, para o lado da sofística, ou em coisa boa, para o lado da filosofia: a primeira é apenas uma redução falaciosa, a aparência da boa psicagogia propedêutica à filosofia. Sofistas, ainda um esforço, não somente para serem filósofos, mas mesmo para serem oradores.[Osório diz: “o” filósofo e orador era Sócrates, para Platão, e todos sabemos como ele se acabou! Não foi capaz de convencer o tribunal de que era tudo aquilo que Platão e Xenofonte dizem que ele era! Ele era, para o tribunal, aquilo que Aristófanes diz que ele era].

E é isso exatamente o que diz Aristóteles. A intenção faz dos sofistas pseudo-oradores, como faz deles pseudofilósofos: "Pois a sofística não está na faculdade (dynamis) mas na intenção (proaíresis)". Suspeita ética então. Mas também desqualificação científica: quando Aristóteles admite certos sofistas entre os oradores e então os declara tecnicamente insuficientes. Aos primeiros dentre eles, Córax, Tísias, falta o método; seu ensinamento, que deve ser considerado do lado sintagmático, negligencia o essencial, o corpo da prova, o entimema, para se ocupar dos acessórios. O maior entre eles, Górgias, só o é para os incultos: precursor do paradigmático, só fez misturar os estilos, sem compreender que o estilo da prosa onde ele introduzia, com as figuras e seu trabalho sobre as sonoridades ("gorgianizar"), o equivalente, ou antes, o sucedâneo, do metro deveria permanecer diferente do estilo da poesia. O fato de não ter compreendido nada quanto à especificidade da prosa retórica faz dele um orador irresistivelmente enfático (assim quando evoca "as coisas frescas e sangrentas", ou quando recebendo um excremento de andorinha, aproveita para exclamar: "Que vergonha, oh Filomela*!”. Da mesma forma, a invenção que é lançada em seu ativo do gênero epidídico, ao lado dos dois gêneros imediatamente úteis que são o judiciário e o deliberativo, faz com que se confunda mais ainda a preocupação retórica de persuadir e o desejo poético de representar. Voltarei a essa acusação freqüentemente lançada, por Aristóteles contra Górgias de ser por demais poeta, pois, colocada em ressonância com Lógou chárin, ela faz a sofística saltar da retórica em direção à literatura e descortina a segunda parte da minha resposta.

É sobre esse fundo crítico que se pode compreender o ponto de chegada. A segunda sofística procede efetivamente, como Protágoras preconiza, à inversão dos estados. Torna-se preferível ser orador ou sofista, e todo mundo pode se convencer disso. Pois é a filosofia que se torna uma sofística e uma retórica insuficientes.

Élio Aristides consagra uma parte de sua vida a refutar Platão, de dentro, Platão contra Platão, fazendo funcionar uma crítica interna, mas também de fora, propondo suas próprias concepções. Assim, em Contra Platão, sobre a retórica, contenta-se, para mostrar o arbitrário da acusação platônica no Górgias — e não é um contragolpe tão anódino ou estúpido como Boulanger quer acreditar — em propor a substituição da retórica pela filosofia no interior da analogia de proporção. Responde ao mesmo tempo à acusação de adulação: a retórica é um phármakon universal (cura a morte, o exílio, o medo que eles inspiram, a cólera dos juízes, a philonikía do povo) exatamente porque o orador não diz o que o ouvinte quer ouvir — pois então isso não mudaria nada. Mas conjectura a partir da ordenação dos fatos (táxis ton pragmáton) assim como o médico a partir da natureza dos corpos (physis ton somáton), não para adular os desejos, mas para que o tratamento que preconiza possa - ser ouvido da melhor maneira, suportado da melhor maneira pelo paciente que é o ouvinte". O ideal, que se superpõe à analogia e se apropria da metáfora, seria não um filósofo-rei, mas um orador-médico, que poderia protheraúein, prevenir os sintomas - pode-se dizer, psicossomáticos — "utilizando a mais sábia das drogas": unicamente falando. Assim todo o trabalho de Élio Aristides consiste em creditar à sofística essa boa retórica que o Fedro queria para a filosofia e fazê-la simultaneamente passar do estatuto de propedêutica (em potência) ao estatuto de paideía (em atos).

Os próprios termos "retórica filosofante" de que Filóstrato se serve, no livro I de Vidas dos sofistas, para definir a primeira sofística são ainda uma refutação do Fedro. Esse registro de nascimento um pouco desconhecido" da segunda sofística mereceria ser estudado palavra por palavra. Quero simplesmente assinalar com qual soberania se marca a inversão do julgamento platônico e aristotélico. Dessa vez, com efeito, é dos filósofos que é necessário ainda um esforço. Filóstrato diz o mesmo que Aristóteles, sofística antiga e filosofia têm o mesmo objeto; mas, acrescenta, sobre esse objeto a sofística "dialetiza" enquanto a filosofia usa de astúcias ("os que filosofam mantêm-se em emboscada com suas questões, atraem para si pequenas partes de sua investigação", 480); em suma, ela faz fita para finalmente "dizer que não sabe ainda". A sofística - é, em ato, o que a filosofia é somente em potência, e apenas os melhores filósofos (toús xún euroíai herméneúontas, "aqueles que têm a hermenêutica fácil", 484) podem aceder ao nome e ao estatuto de sofistas. Lembremo-nos de Gama 2 (1004b 27ss.): tanto os sofistas quanto os dialéticos se movem" no mesmo gênero" que a filosofia (tratam do ente que é comum a todos), mas "a sofística é uma filosofia somente aparente, não real", "ela parece mas não é" (phainoméné, oúsa d'oú). Aqui (484) Filóstrato nos diz que falará de início dos filósofos, que os despachará em suma, porque ouk óntes sophistaí, dokoûntes dé, "eles não são sofistas, mas apenas o parecem", e ganham assim a eponímia.

A sofística, pseudofilosofia e mesmo pseudo-retórica, tornou-se assim, nas respostas palimpsêsticas da segunda sofística a Platão e Aristóteles, retórica filosofante, modelo e gênero epônimo da filosofia. Essa inversão sofística/filosofia, e a vitória sofística, operou-se no terreno da retórica e não da filosofia, por uma insistência sobre o "falar para" em detrimento do "falar de", pela ênfase dada, desde a origem, ao papel farmacêutico da linguagem.

O texto que serve manifestamente de ancestral ou de palimpsesto ao uso que faz a primeira sofística, depois Platão, e depois, via Eurípides e Isócrates, a própria segunda sofística do termo phármakon se encontra no livro IV da Odisséia. Helena aplica a Telêmaco em lágrimas um phármakon, certamente egípcio, para que ele cesse de chorar e se deixe levar "pelo prazer dos discursos" (v. 239). Helena é, em que pese o que diz Aristóteles, a heroína sofística por excelência, porque está transida de discurso. Na Odisséia, ela é não somente a farmacêutica, que dá o remédio, mas encarna também a própria droga, como se vê na curta narrativa que imediatamente propõe Menelau (v. 271-289). Quando o cavalo cheio de reis gregos foi para Tróia, Menelau conta que ela fez seu percurso chamando cada um dos guerreiros por seu nome e imitando a voz de suas esposas, suas sonoridades, suas inflexões. Todos então teriam pulado para fora se Ulisses não os tivesse retido, explicando-lhes que ele bem reconhecia aí Helena.

A ênfase é dada ao papel proteiforme, o papel de equivalente geral do lógos-phármakon. Como uma moeda sonora, ele faz as vezes de todas as coisas (como Helena faz as vezes de todas as mulheres). Não designa o que está lá, na adequação filosófica, mas liberta do presente para fazer existir em seu lugar o objeto do desejo. É verdadeiramente e de forma não fortuita, como o phármakon de Theuth, como a escrita, um pecado contra o presente.

Górgias, na seqüência do Elogio (§ 11), insiste bastante nisso: é do tempo, na medida em que ele não é jamais presente, que o discurso tira sua potência. [Osório diz: tempo]

Se todos acerca de tudo possuíssem a memória das coisas passadas e (?) presentes, e a antecipação das futuras, o discurso não seria como tal; mas já que em realidade (?) não se tem em memória o passado, não se perscruta o presente (sképsasthai), não se adivinha o porvir, o discurso é pleno de recursos. [Osório diz: discurso e tempo]

 

Libertar do presente,

 

Da noção de phármakon surge também outra coisa além de uma retórica behaviorista e uma estratégia discursiva. A oposição não se situa mais somente entre "falar para" e "falar de", mas é o "falar de" que se encontra ele mesmo fissurado, desdobrado. Em termos selvagemente anacrônicos, é aqui, creio, e não somente na descrição desse ou daquele sofisma ou paralogismo, que é vantajoso evocar a distinção entre sentido e referência.

No "significar alguma coisa" aristotélico, que torna equivalente discurso sobre nada e nenhum discurso, o sentido — é todo o trabalho do livro Gama da Metafísica — está ancorado na essência. Para retomar uma expressão de Pierre Aubenque, porque as coisas têm uma essência que as palavras têm um sentido". Aristóteles esmaga o sentido na referência que o rege. As coisas comandam as palavras, daí a necessidade de dissipar a homonímia, e é por isso que a palavra pode servir de órganon. No phármakon, ao contrário, a relação de sutura é inversa, é o sentido que comanda a referência, a palavra produz a coisa. De forma paradigmática, o Tratado do não-ser parece-me inteiramente fabricado para ao mesmo tempo demonstrar e fazer com que o ser não seja nada senão um efeito de dizer. Para não retomar a análise, lembrarei uma única frase, emblemática da “logologia” por diferença com a ontologia; aquele que fala não diz o que é (o verdadeiro), tampouco aliás o que não é (o falso): "ele diz um dizer". Falar lógou chárin é, no nível da análise a que chegamos agora, compreender que o lógos não significa a phýsis — não é a referência que dá o sentido ou ainda os sofistas não são meteorologistas, fisiólogos, ontólogos, a sofistica não é uma ciência da natureza. É compreender, por outro lado, que as palavras não exprimem tampouco o mundo interior do sujeito falante, os pathemata tês psyches, suas idéias ou suas sensações que se estabilizariam por isso mesmo e se tornariam comunicáveis — o sentido não é a impressão sensorial ou a imagem verbal, a sofística não é uma psicologia. E entretanto o sofista, que não faz nem uma ciência da natureza nem uma ciência da alma, não se contenta, como o exemplar Crátilo, em agitar o dedo.

A melhor forma de caracterizar mais adiante a relação que se instaura entre discurso sofístico e mundo é lida através dessa frase do Tratado, na versão dada por Sextus Empiricus (Adversus mathematicos, VII, 85), que extraio brutalmente demais de seu contexto: "Se é assim, não é o discurso que indica o exterior, mas o exterior que revela o discurso" (ouch ho logos toú ektós parastatikós estin, allà tó ektós toú lógou menytikàn gínetai).

Tudo aí deveria ser comentado, mas insistirei no momento sobre gínetai: a significação do lógos só pode ser apreendida em seguida, posteriormente, gínetai e não mais estin, pelo efeito — mundo que produziu performance discursiva. Compreende-se que um desses efeitos-mundo possa ser o efeito retórico sobre o comportamento do ouvinte, mas esse é apenas um dos seus efeitos possíveis. A menos, como diz Jean-François Lyotard, que não se amplie a idéia de sedução: "Não é o destinatário que é seduzido pelo destinador. Este, o referente, o sentido não sofrem menos do que o destinatário a sedução exercida". O discurso sofístico não é somente uma performance no sentido epidêitico do termo, é de parte a parte um performativo no sentido austiniano do termo: "How to do things with words". O discurso sofístico é demiúrgico, fabrica o mundo, faz com que ele aconteça. [Tradução: Como fazer coisas com palavras.].

A segunda palavra sobre a qual gostaria de insistir é menytikón, e aí não explico, gloso e extrapolo. O termo nos introduz, sem dúvida, segundo uma das etimologias mais verossímeis, no domínio da mântica. O exterior faz-se o "revelador" do discurso, no sentido em que o que acontece realiza, preenche a predição. O que acontece, o que quer que aconteça, pois o que quer que aconteça, uma coisa ou seu contrário, o oráculo e o sonho terão sempre razão. Não é uma questão de destino, é simplesmente uma questão de lógos: que o filho mate seu pai, isso acontece quer ele o mate ou não. Freud nos ensinou isso através da história de Édipo, mas Heródoto também, com o sonho do rei Astíage.

A inclinação da segunda sofística pelos oráculos e os sonhos, os interesses nevróticos de Élio Aristides e a profusão dos escritos sobre a interpretação dos sonhos (lembremo-nos da tão bela etimologia que dá Artemidoro: ter um sonho, óneiros, é ón eireîn, predizer o ser), não indica simplesmente o refúgio na superstição do sincretismo ou do politeísmo ultrapassado por um deus único. É também a sensibilidade ao performativo. A comparação que faz Filóstrato no início do livro I (480-491) entre filosofia e "mântica humana" de um lado, antiga sofística e a arte profética (thespioidós) e oracular (chresteriodes) é a esse respeito fundamento da paideía, no vínculo de ambas com a tragédia. Intricação entre literatura, pedagogia e política, eis aonde o plásma nos conduz. O efeito-mundo se produz em dois níveis: o da fabricação do mundo humano, do consenso que constitui a cidade, cultura em oposição à natureza, o da ficção literária, do patrimônio que constitui a identidade de um povo, cultura em oposição à incultura, certamente, para servir de ponte entre os dois, com a paideía, criação do filhote humano e educação do pequeno grego. É assim que a demiurgia do lógos esboça o espaço das duas sofísticas ao mesmo tempo.

 

De início, a literatura. Gostaria de voltar à censura que Aristóteles não cessa de fazer a Górgias, de ser por demais poeta para ser bom orador. Não se trata somente da mistura dos estilos (por demais xenikón, por demais "estrangeiro" para ser claro), mas da mistura das potências do lógos: efeito sobre o outro e efeito-mundo, ficção. Pois o caráter demiúrgico do lógos sofístico poderia também ser chamado de "poesia" no sentido etimológico do termo — como Platão o define: operação que faz passar do não-ser ao ser. Exceto que a poesia, tal como é escrita pelos poetas, é apenas parcialmente sofística: seria antes constituída por uma tensão entre filosofia e sofística. Seu lado filosófico é seu liame com a verdade; verdade não científica certamente, mas inspirada e garantida pelas Musas: esse entusiasmo não tem nada de demiúrgico, ele é como em íon, obediente e limitado. O poeta que, segundo Aristóteles, representa as ações deve dar a essência ou o universal das coisas de que fala e fazê-las passar à memória "tais como nelas mesmas a eternidade as transforma" (sem Píndaro, não há Jogos olímpicos). A poesia é assim, diz Aristóteles, "mais filosófica do que a história". E se citei Mallarmé, é porque a relação poética com a verdade não me parece ter sido apaixonante. Os filósofos fazem como os egípcios, os caldeus e os indianos, eles fazem hipóteses a partir das estrelas (myríois astéron stochazómenoi): tomam a natureza como ponto de partida e tiram delas toda sua ciência de futurólogos. Os sofistas, ao contrário, fazem como a Pítia, falam de início, dizem palavras plenas de nobreza e de confiança, e são assim não humanos mas demiúrgicos; a "clara apreensão do ente" à qual eles chegam é sempre, e muito explicitamente, somente um efeito de estilo. [Osório diz: poesia]. [Filóstrato acaba de citar os inícios habituais dos discursos sofísticos: "Eu sei, "Estou consciente de...". Acrescenta: "É um estilo (idéa) desse gênero, próprio a seus exórdios, que faz ressoar antecipadamente numa nobreza dos discursos, um pensamento, e uma clara apreensão do ser". É por isso que mantenho minha interpretação de ênfase “logológica”, face à que propõe A. Brancacci (Seconde sophistique, historiognaj e e philosop te, infra p. 91, 96 e nota 11), embora esteja evidentemente disposta a retomar, por minha conta, as frases que se seguem em seu artigo, em particular: "Se então lhe perguntássemos o que distingue a sofística da filosofia, Filóstrato só poderia ter uma resposta: a maneira diferente de tratar os discursos".]

É a essa demiurgia discursiva que se aplica o termo de plásma. Uma das primeiras aparições de plásso com esse sentido deve ser encontrada ainda no Elogio de Helena. Exatamente antes da passagem sobre o tempo, Górgias evoca as duas artes, as artes gêmeas da feitiçaria e da magia (goetheía kai mageía), sendo uma "enganos da alma" (psyches hamartemata), a outra "ilusões da opinião" (dóxés apatemata), e que geralmente foram identificadas, uma como poesia, a outra como a retórica. Ele evoca então todos os que persuadiram e persuadem, "modelando", "forjando" "fabricando", plásantes, como Prometeu modela as criaturas, um pseudê lógon.

Um fragmento de Górgias pode ajudar a medir a distância que separa o pseûdos completamente negativo que a filosofia imputa à sofística e esse pseûdos que é o produto da atividade plástica, a ficção. Jogar esse "jogo" tão demiúrgico quanto o da criança heracliteana (o paígnion que é o Elogio para seu autor, § 21), não é insolência ou ingenuidade, tagarelice ou imaturidade, mas sabedoria e justiça: "Aquele que ilude é mais justo do que aquele que não ilude, e aquele que é iludido mais sábio do que aquele que não é iludido" (B 23). "Aquele que ilude é mais justo, acrescenta, porque realiza o que prometeu, e aquele que é iludido mais sábio, porque aquele que não é insensível é fácil de ser afetado pelo prazer dos discursos". Esse fragmento nos foi transmitido por Plutarco como se aplicando à tragédia. Justiça, fundamento da cidade, sabedoria, realmente modificada pela modernidade, sob nenhuma forma, nem romântica, nem surrealista. Mallarmé é filosoficamente poeta quando opõe em Crise de vers à reportagem universal (o órganon degradado), uma ontologia reencontrada por detrás das aparências fenomenais: dizer "idéia mesma e suave, a ausente de qualquer buquê" é ser, loucamente, platônico. "Poesia e verdade sendo, como sabemos, sinónimos”.

Mas a poesia é também sofística. O pastor hesiódico o disse desde o início, no prólogo da Teogonia, fazendo falar as Musas: "Sabemos dizer muitas mentiras bem semelhantes às realidades" (pseúdea... etymoisin homoîa, v. 27), mesmo se elas sabem também, "quando o querem", "entoar verdades" (alethéa gerysasthai, v. 28). É o problema mesmo que coloca o "verossímil aristotélico. Homero, diz Aristóteles (Ret., 111, 24), acima de tudo "ensinou aos outros a dizer mentiras como se deve (pseúde légein hos dei). Não as mentiras necessárias para que aqueles que as ouçam se tornem melhores, purgados. Mas as mentiras como é necessário para que se acredite nelas. Homero é o mestre do "paralogismo": sabe apresentar um fato ou um acontecimento que sabemos ser verdadeiro, para que se conclua daí a existência de um primeiro que seria causa e que entretanto nunca aconteceu, ajudado nisso por um estilo que desvia a atenção para suas próprias belezas, e apaga o absurdo por sua clareza e sua simplicidade. É a maneira, fantástica, que preconizam e praticam Lewis Carrol ou Borges: incluir pequenos fatos verdadeiros e ter um estilo limpidamente mimético para descrever o impossível. [Osório diz: seria a realidade fantástica?]

Homero sofista, muitos textos deveriam ser relidos nessa perspectiva. Em todo caso, um nos obriga a isso, o Discurso XI de Díon Crisóstomo: De Tróia, que ela não foi tomada, onde ele remonta, paralogicamente, de fato em fato, até essa certeza que lhe vem aliás de fonte certa, — o próprio Menelau, — de que era Páris o esposo legítimo. Homero é o maior mentiroso do mundo, diz Díon, simplesmente porque não sabe sustentar suas mentiras até o fim. Basta lê-lo e sabe-se quando ele conta e quando inventa. Por conseqüência, é muito voluntariamente que os gregos se deixavam enganar pelo Ilíada e pela Odisséia porque a história os adulava e lhes era útil. Bem entendido, a verdade histórica restabelecida por Díon é a mais desenfreada das ficções. Assim como sua conversão à filosofia, esse é provavelmente um truque de sofista, mas que tem o extremo interesse de mostrar que poesia e sofística são indiscerníveis quando se mantém a posição aristotélica, que consente ao verossímil ad majorem veritatis gloriam. [Osório pergunta: quem é?]

Gostaria de fazer uma segunda observação, sempre a propósito da censura aristotélica, e que consiste em uma citação de Roland Barthes. Em seu artigo sobre a antiga retórica, ele insiste no fato de que a retórica de Aristóteles se define por oposição à poética e que todos os autores que reconheçam essa oposição poderão ser classificados na retórica aristotélica: "Esta cessará quando essa oposição for neutralizada, quando retórica e poética se fundirem, quando a retórica se tornar uma téchne poética (de criação)". E, acrescenta, "essa fusão é capital, pois está na origem da idéia mesma de literatura". Podemos subscrever a essa definição da literatura como fusão da retórica e da poética, mas, bem entendido, só pode "fundir-se" aquilo que me foi distinguido. Retórica e poética não se fundiram na primeira sofística, estão em fusão no lógos demiúrgico (seria necessário aqui colocar o problema do lógos pré-socrático em geral e do estatuto do sofistico no pré-socrático). Por outro lado, essa fusão em literatura se opera certamente com a segunda sofística. Esta é constantemente caracterizada por sua mímesis rhetoriké, que Bompaire e Reardon propõem traduzir por "cultura literária". Ao mímesis rhetorike é a apropriação, por uma imitação que se desenvolve ao longo do curso escolar, de todas as obras da antiguidade clássica: a poesia, a filosofia, a história, a retórica propriamente dita e, com ela, a deliberação política, são assim absorvidas como espécies desse gênero universal que constitui a retórica geral.

Mas o que caracteriza essa retórica mimética é que ela produz o novo, é inventiva, criadora. É preciso ler Reardon para medir a importância, ao lado de um florescimento dos gêneros antigos, da autonomização progressiva de gêneros novos. O mais violentamente novo dentre eles é certamente aquele que se tornará literatura por excelência, o romance. Não entrarei nas polêmicas que, através de Rhode, Perry, Reardon, Hagg visam a atribuir ao romance uma origem cronológica e origens tema-[p. 265] ticas e estilísticas: epopéia; diálogo platônico, dizia Nietzsche; elegias eróticas alexandrinas; narrativas populares egípcias. Como diz Perry a propósito da tese dos outros.

By the some method and logic by which romance is derived from school exercises, one may derive the word "smile" from the word "mile"; the former contains all the elements of the latter, plus "s", witch may be explained as due to "development". (Tradução: Pelo algum método e lógica pela qual o romance é derivado de exercícios escolares , pode-se derivar a palavra " sorriso" da palavra " milha" ; O primeiro contém todos os elementos deste último , além de "s" , bruxa pode ser explicado como devido ao "desenvolvimento").

Gostaria simplesmente de enfatizar os grandes traços encontrados, por Perry e Reardon do parentesco entre segunda sofística e romance. Eles hesitam, tanto um quanto o outro, em tomar as coisas de fora, como se se tratasse de dois conjuntos heterogêneos entrando às vezes em superposição; ou de dentro, como se se tratasse do desdobramento de um mesmo movimento, de uma mesma força. Os indícios principais de uma proximidade são a contemporaneidade, a identidade das pessoas (Élio Aristides, Filóstrato, Luciano, escrevem usando todos os gêneros); a interpretação dos próprios gêneros: como observa Reardon, "a acreditar em Filóstrato, Apolônio, foi um sofista consumado"; o próprio romance é um pot-pourri de exercícios retóricos, dialéxeis, melétai, synkríseis e certamente as famosas ekphráseis, essas "descrições", de quadros por exemplo, onde se fazem ler em espelho em um objeto sensível a intriga e a estrutura do próprio romance. Último traço: o fato de que os melétai e o romance parecem conhecer a mesma voga, junto ao mesmo público, em uma coexistência intrigante do cultivado e do povo (Reardon evoca os drugstore paperbacks, que caracteriza pelo termo de sofisticação).

Mas creio que se pode ir muito mais longe no parentesco. Desde que se tome como ponto de partida não mais a diferença aristotélica entre retórica e poética, não mais a diferenciação — ela também aristotélica e subseqüente — em gêneros, mas o lógos sofístico em sua eficácia sobre o outro e sobre o mundo, parece-me que se compreendem bem mais facilmente, e justamente, a força do liame entre sofística e romance.

De uma certa forma, Perry e Reardon o dizem, mas, parece-me, sem saber muito bem que o dizem. Assim, quando Perry tenta definir o indefinível romance, ele antecipa, em uma definição por demais sincrética para não ser contraditória, esse elemento, para ele (um) entre outros, mas a meus olhos, essencial: o romance é feito, diz, “for its own sake as a story”. Proponho traduzir essa observação por lógon chárin. E Reardon, exortando a si mesmo a propósito de Élio Aristides, a não adormecer cedo demais, adianta por seu lado que “é difícil mas não vão, desembaraçar-se da noção de que a literatura deve dizer alguma coisa - semaínein ti. (Traduzir: para seu próprio bem como uma história).

Um pseûdos que se sabe pseûdos e se dá como tal em uma apáte livremente consentida, um discurso que renuncia a toda adequação ontológica para seguir sua demiurgia própria, lógou chárin e não semaínei ti, é bem a "ficção" (plásma) romanesca.

Alem disso, é evidente nessa perspectiva que a popularidade do romance tenha a ver com o aprendizado da eficácia do lógos através da paideía, nas escolas em que, como lembra Marrou, o diretor era sofista. Poder-se-ia mesmo adiantar que a popularidade do romance é um avatar literário do consenso político. É aqui, sem dúvida, que é maciçamente necessário reintroduzir as condições históricas propriamente ditas; de um lado, a Atenas do século V, a construção das cidades e o jogo das forças democráticas; de outro, o mundo romano de Adriano no final dos Severo, a sujeição política das cidades gregas, livres essencialmente para se entregar ao novo pecado grego, a corrida às titularidades, mas, simultaneamente, sua dominação cultural sob os imperadores filelenos, a de sua língua, de toda sua civilização. Dois mundos pois que descreve P. Vidal-Naquet no Posfácio a Arriano "entre dois mundos", a cultura se estendendo ainda mais longe do que a paz, ainda mais longe do que a própria natureza (Todo mundo não vê o mesmo céu — diz Díon - mas mesmo os indianos conhecem Homero).

Mediante isso, a primeira sofística produz pelo lógos “a força do fraco” (para retomar a expressão de J. F. Lyotard): a cidade democrática que só existe pela criação contínua da homónoia cara a Ântifon. É a lição do mito de Protágoras, com a condição de acrescentar ao lógos que faz parte das artes prometeicas, a sabedoria e a justiça que são um dom suplementar de Zeus. E a segunda produz, como testemunha a retomada do mito por Élio Aristides e a série de decalagens muito sutis que ele aí introduz (Ret., II, 394-402), não a partilha do lógos e o nivelamento, graças a ele, do forte e do fraco, mas uma mestria de professor, que se apresenta como o modelo e a condição da dominação política. Pois dessa vez o lógos por si só constitui o dom direto de Zeus, que Prometeu o filantropo pede que Hermes não reparta entre todos, como as bases do teórico, ou os olhos as mãos e os pés, os "órgãos" pois. É antes necessário selecionar "os melhores, os mais bem nascidos, aqueles que têm a mais forte natureza" para lhes confiar o dom retórico, a fim de que eles tenham como salvar os outros. O lógos assim repartido torna-se para a comunidade não um phármakon, mas um phylakterion um amuleto, um escudo, ou, segundo a etimologia, “o guardião que não dorme jamais". Os melhores retores são assim, hierarquicamente, os melhores professores e os verdadeiros chefes políticos, em um amálgama que mascara, não sem ideologia, a privação de toda eficácia política direta, concreta: é assim que na escola, com as melétai, faz-se, segundo as palavras de Vidal Naquet, "ficção-política". [O que é phylakterion?]

A segunda sofística, ela também, exige explicitamente ser colocada em relação com a história. Volto pela última vez ao texto fundador de Filóstrato. Ele nos dizia que a antiga sofística é uma filosofia em ato, realizada, que trata minuciosamente da ética, da religião ou do kósmos. A segunda sofística "faz a hipotipose", quer dizer, descreve em linhas gerais, produz a generalidade de tudo aquilo de que a história se ocupa, os pobres, os ricos, os nobres, os tiranos, e mais geralmente todos os temas que podem assim se inserir sob um nome (tàs es ónoma hypothéseis, 481). Da mesma forma, para Filóstrato, que a antiga sofística realizava a filosofia, também a segunda sofística realiza a história fazendo passar, se se quer, da investigação empírica ao tipo ideal. Chega-se a uma verdadeira analogia de proporção: primeira sofísfica/filosofia = segunda sofística/história, ou: historia est quae philosophia fuit. Se a história devia ser inclinada para o lado da primeira sofística face à filosofia, é agora a filosofia — sobre a qual Reardon nos diz que "ela figura no pequeno equipamento do retor" — que deve ser colocada do lado da segunda sofística face à história. É agora o olhar historiador que lança sobre a sofística e sobre seu parentesco filosófico e literário a acusação de pseûdos. Perry o enfatiza vigorosamente, para responder à tese de Ludvidovsky segundo a qual "o romance foi na origem somente uma doença da historiografia": "o romance só é pseûdos visto da historiografia; visto do romance, ele é plásma" .

Desse novo conflito, é testemunho o texto de Luciano, a única obra antiga "que se deseja ensaio sistemático sobre a história", Como escrever a história. Luciano diz, sem rodeios: "A história não admite a mentira (pseûdos), mesmo a mais leve, mais do que o conduto chamado traquéia-artéria pelos discípulos dos médicos pode receber a bebida que aí se induz" (27). E assim como a filosofia devia visar à essência, a história deve ir ao essencial, escolher os fatos, "ver a rosa ao invés de considerar atentamente os espinhos colocados próximos da haste" (28). Narrador do que foi, imitador tão perfeito que se faz esquecer, o historiador — cujo julgamento deve ser "espelho brilhante sem mancha e bem centralizado" (50) — se opõe ponto a ponto ao poeta que, à diferença de Tucídides "tem o direito de derrubar com um traço de pena a fortaleza dos Epípolas". "O historiador não é poeta, é narrador, e quando os atenienses são vencidos em um combate naval, não é ele quem afunda as naus". Dito de outra forma, o historiador não é romancista. Como escrever a história deve ser lido tendo na outra mão A história verdadeira, Verae historiae, cujo título, que joga com a palavra história, por si só já nos faz compreender que Luciano é efetivamente "a sophist's sophist", segundo as palavras de Graham Anderson, e que sua ironia põe em abismo a sofística. "Decidi mentir, porém com mais honestidade do que os outros, pois há um ponto sobre o qual direi a verdade, é que conto mentiras": com os mesmos meios paradoxais e jocosos do humor judeu ("Você diz que vai à Cracóvia para que eu creia que vá a Lemberg. Mas sei bem que você vai verdadeiramente à Cracóvia. Por que então mentir?") a história verdadeira é um pseûdos que se dá como pseûdos: puro plásma. "Vou contar aventuras que não me aconteceram e que não extraí de ninguém; acrescento a elas coisas que não existem de forma alguma e que não podem ser: é preciso então que os leitores não acreditem absolutamente nelas"; e eis-nos transportados, já que "cada detalhe dessa história faz alusão, não sem paródia, a um ou outro dos antigos poetas, historiadores, filósofos", assim como alusão, se ouso dizer, aos romancistas do futuro, como Ulisses "que abriu o caminho para esses timos de charlatanice", mas também como Cirrano na lua e como Pinóquio na baleia, em uma navegação historikós kaì erotikós, romanesca.

Meu intuito foi o de mostrar como, desde que nos colocamos no ponto de vista do lógos sofístico considerado como lógos lógou chárin, produtor retórico de um efeito sobre o outro e produtor poético de um efeito-mundo, a relação entre primeira e segunda sofística não é apenas tolamente mimética, é também filosoficamente instrutiva. A primeira sofística face à filosofia opunha ao discurso conforme ao ente, ou ao ser do ente, um discurso criador de consenso cultural. É finalmente esse próprio deslocamento, da adequação à homónoia, que se lê em seguida no deslocamento da oposição: a história em lugar da filosofia face à segunda sofística. Pois o pólo do verdadeiro não é mais representado pelos entes (ónta), mas, e é bem esse o efeito óbvio da antiga sofística, por aquilo que acontece, na medida em que se faz, em que se age, em que se produz, em que se utiliza: os gignómena, os prattómena, as práxeis, os prágmata, os chrémata. Podemos nos arriscar a designar de outra forma esse deslocamento: teríamos passado, ao mesmo tempo, da ontologia às ciências humanas e da sofística à literatura?” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 209, 211, 214, 215, 216, 217, 242-243, 244, 245, 246, 247, 249, 251, 252, 253, 254, 255, 256, 257, 258, 259, 260-270).

 

 

 

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