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41.65 – Primeira e segunda Sofística – o que foram.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.65 – Primeira e segunda Sofística – o que foram.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Em que a primeira e a segunda sofística são ambas sofísticas?

A priori todas as dúvidas são permitidas e a aproximação que faz saltar mais de seis séculos (imaginem de 1400 ao ano 2000, mas afinal de contas o Renascimento fez bem pior e a expressão "Renascimento grego" foi recentemente proposta por Bowersock), a aproximação corre o risco de parecer de início sofística no sentido banal, quer dizer pejorativo, do termo: uma simples questão de homonímia. Com efeito, os dois objetos, ao menos hoje em dia, nem sequer pertencem ao mesmo corpus. Quanto à primeira sofística, ela é um objeto que se tornou, ou melhor, que voltou a ser, filosoficamente consistente e, é necessário que se diga, bem na moda — uma alteridade constitutiva da filosofia platônico-aristotélica, um duplo, uma racionalidade alternativa.

A segunda sofística, ao contrário, ainda não se constituiu em objeto de reflexão filosófica. Ela pertence a um outro corpus, o da retórica. E se quase não se hesita mais em dar-lhe, como outrora Wilamowitz, uma existência real, isolável, deve-se constatar que a identidade que lhe atribuem nunca é senão histórica e/ou literária. Os trabalhos de Bowie ou de Reardon, tão notáveis em sua categoria, permitem essencialmente, desse ponto de vista, ponderar de modo diferente a avaliação de Bowersock: "A segunda sofística tem mais importância na história romana que na literatura grega”. Mas essa identidade rica e literária ou literária e histórica, não é enquanto tal filosoficamente analisada, não se lhe aplicam as mesmas questões que à primeira sofística.

Tudo se passa como se estivéssemos, para a segunda sofística, em uma etapa anterior da apreciação ou da "reabilitação", uma etapa em que a primeira sofística estagnou por muito tempo e certamente às vezes ainda estagna: pode-se comparar o valor literário, um jogo retórico de mais ou menos bom gosto, que já se costumava atribuir ao Elogio de Helena de Górgias e o do Discurso Troiano de Díon Crisóstomo, ou ainda o valor político, leais ou menos demagógico e mercantil, que se atribui à pedagogia de Protágoras, com a paideía fastidiosa e a obsequiosidade, no Império, de Élio Aristides: mas não nos interrogamos nunca sobre o possível sentido filosófico dessas obras ou dessas práticas, que ao mesmo tempo apresentam antes um interesse documentário do que um atrativo real. A imitação funciona aqui ainda, de modo muito platônico, em favor do modelo; a primeira vez, a primeira sofística, era, senão uma tragédia, ao menos um abalo crítico pleno de ambição filosófica, visando, para retomar termos de Rohde e de Boulanger, a "submeter o mundo do conhecimento e o da ação"; a segunda vez, a segunda sofística, é apenas um conjunto de receitas, é uma farsa, e dessa vez mesmo no sentido culinário do termo, tanto mais indigesta por ser, nos fatos, na realidade da época, triunfante e triunfalista. Não nos esqueçamos de que, se Hipócrates corava de vergonha no início do Protágoras com a simples evocação da possibilidade de se apresentar um dia diante dos gregos na qualidade de sofista, o imperador Trajano, sobre seu carro de triunfo, inclinava-se para Díon para murmurar-lhe: "Não sei o que dizes, mas te amo como a mim mesmo" e que na capela de Alexandre Severo encontravam-se quatro retratos: o Cristo, Orfeu, Abraão e Apolônio de Tiana, o herói do romance biográfico de Filóstrato.

Tudo se passa como se a primeira sofística houvesse perdido a guerra filosófica. E a segunda, acreditando ter sua desforra, tivesse de fato permanecido sobre o próprio terreno, no interior das fronteiras a que a derrota reduzira seu modelo. Mediante isso, a filosofia não teve nenhuma dificuldade em excluir, por muito tempo, as duas sofísticas simultaneamente do campo da sua história.

É partindo de uma reflexão sobre o estatuto sofístico da linguagem que me parece possível estabelecer entre a primeira e a segunda sofística uma relação que não seja de homonímia ou de caricatura, mesmo se certamente a identidade das palavras e a mímesis devam representar, aí, um papel essencial. Em suma, que baste enunciar para fazer ser e que nesse procedimento de ficção, no sentido vigoroso do termo, a sofística e as sofísticas consigam fazer frente à filosofia por um lado — compreendida como ontologia — e à poesia stricto senso do outro, eis o que gostaria de mostrar através do exemplo, se um excesso de educação filosófica e poética não fizesse voltar eternamente a questão: mas será que isso é verdadeiro? É assim o sentido mesmo da relação da filosofia com a literatura via retórica que a apreensão como um todo da primeira e da segunda sofística parece-me poder esclarecer. Projeto por demais ambicioso e serei obrigada, ao percorrer certos textos, a sugerir, no melhor dos casos, algumas pistas; no pior, alguns tópoi.

A primeira sofística perdeu a guerra filosófica. É, sabemos, em nome da verdade que a sofística foi de início e sempre condenada: a acusação principal lançada por Platão bem como por Aristóteles se deixa consignar no termo pseúdos. Pseúdos objetivo, o "falso": o sofista diz o que não é, o não-ser, e o que não é verdadeiramente ente, os fenômenos, as aparências. Pseúdos subjetivo, a "mentira": ele diz o falso com a intenção enganar, utilizando, para obter um êxito rentável, todos os recursos do lógos — ao mesmo tempo lingüístico (homonímia dos termos), lógico (raciocínio falso, sofisma) e racional propriamente dito (inaptidão para o cálculo e para a estratégia, tolice do outro). Logo de saída então, no Sofista como em Metafísica Gama 2, a sofística é uma pseudofilosofia: filosofia das aparências e aparência da filosofia. [Osório dia: como Platão e Aristóteles veem a Sofistica].

(...)

Meu intuito foi o de mostrar como, desde que nos colocamos no ponto de vista do lógos sofístico considerado como lógos lógou chárin, produtor retórico de um efeito sobre o outro e produtor poético de um efeito-mundo, a relação entre primeira e segunda sofística não é apenas tolamente mimética, é também filosoficamente instrutiva. A primeira sofística face à filosofia opunha ao discurso conforme ao ente, ou ao ser do ente, um discurso criador de consenso cultural. É finalmente esse próprio deslocamento, da adequação à homónoia, que se lê em seguida no deslocamento da oposição: a história em lugar da filosofia face à segunda sofística. Pois o pólo do verdadeiro não é mais representado pelos entes (ónta), mas, e é bem esse o efeito óbvio da antiga sofística, por aquilo que acontece, na medida em que se faz, em que se age, em que se produz, em que se utiliza: os gignómena, os prattómena, as práxeis, os prágmata, os chrémata. Podemos nos arriscar a designar de outra forma esse deslocamento: teríamos passado, ao mesmo tempo, da ontologia às ciências humanas e da sofística à literatura?” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 248-250 e 270).

 

 

 

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