Sofística
(uma biografia do conhecimento)
24.14 – Platão e sua hostilidade aos Sofistas.
Kerferd ensina:
“Das leituras que faço, e como mais adiante tentarei demonstrar, hoje tenho dúvidas se Platão, realmente, era hostil aos Sofistas ou era apenas irônico, e digo isso por ele chamar para si ensinamentos sofísticos e abraçar o sofista Sócrates como seu mestre e guia, embora ele também desvirtue o próprio pensamento socrático em prol de seu próprio pensar, como demonstrou o Fernando Pinto em “Sócrates, um filósofo bastardo”. É claro que, a religião potencializou essa “hostilidade” para afirmar seus fins e objetivos.
Mas quanto a essa hostilidade pontua Kerferd:
“A hostilidade de Platão em relação aos sofistas é óbvia e sempre foi reconhecida. Mas o que exatamente ele diz sobre eles nem sempre tem sido descrito com precisão. Em dois lugares, nos seus diálogos, encontramos o que pode ser tomado como exemplo desse tratamento. No Górgias, 462b3-465e6, ele distingue entre, de um lado, uma série de atividades genuinamente científicas, que chama de technai, cujos alvos ou objetivos são o mais alto grau de excelência em cada uma de suas próprias esferas, e, de outro lado, várias atividades empíricas. Estas não são científicas, visto que não estão baseadas em princípios racionais e são incapazes de dar explicações; visam ao agradável, em vez da excelência, e fazem isso sendo complacentes com as expectativas e os desejos das pessoas. São imitações enganadoras de genuínas technai. Na área geral de preocupação com a alma humana, Platão inclui a declaração de normas de comportamento, e isso ele considera genuína techné. Corresponde a isso, contudo, uma atividade espúria, a investigação empírica conhecida como sofística.”
Se o empirismo não é ciência, e não defendo nada sobre o que é ou deixa de ser ciência, o que fazem os ingleses e, em especial, Newton, tido como o iniciador da “ciência moderna”?
Prossegue Kerferd:
“No diálogo Sofista, a análise é mais elaborada e a hostilidade não menos marcante. Nada menos de sete diferentes definições do sofista, todas depreciativas, com uma única possível exceção, são discutidas uma por vez. Tem-se discutido se Platão as considerava todas descrições satisfatórias ou não, mas é claro, acho eu, que as concebia como expressando pelo menos aspectos particulares do movimento sofista. Elas definem o sofista (1) como o caçador assalariado de jovens ricos, (2) como um homem que vende "virtude" e, visto que vende bens que não lhe pertencem, como um homem que pode ser descrito como mercador do ensino, ou (3) que vende a varejo em pequenas quantidades, ou (4) como um homem que vende a seus fregueses bens fabricados sob encomenda. Numa outra visão, (5) o sofista é alguém que entretém controvérsias do tipo chamado erística (termo importante discutido mais adiante no capítulo 6), a fim de ganhar dinheiro com a discussão do certo e do errado. (6) Um aspecto especial do sofisma é identificado, então, como um tipo de exame verbal chamado Elenchus (refutação lógica), que educa purgando a alma do vão conceito de sabedoria. O que, exatamente, Platão está tentando transmitir aqui tem sido tema de discussão, mas parece que ele considera essa função, essencialmente negativa, um dos menos indesejáveis resultados da atividade sofista, quando a rotula de "a sofística que é de família nobre", presumivelmente para distingui-la de outros aspectos das atividades dos sofistas [Osório diz: isso casa perfeitamente com o Sócrates sofista!]. Finalmente, no final do diálogo, depois de uma longa digressão, chegamos ao ponto em que (7) o sofista é visto como o falsificador da filosofia, construindo, de maneira ignorante, contradições baseadas mais em aparências e opiniões do que na realidade.
Será necessário voltar, mais tarde, ao que Platão tem a dizer a respeito da erística, do Elenchus e da arte de inventar contradições. Mas fica claro que suas caracterizações, no Sofista, que podem ser postas ao lado de outras afirmações semelhantes em outros diálogos, constituem uma inequívoca condenação.
O currículo da educação sofista não começava do nada, - seguia-se ao término do estágio primário. Segundo Esquines, o orador,foi Sólon quem, no início do século VI a.C., tornou compulsório o ensino da leitura e da escrita, em Atenas (Esquines, In Tim. 9-12) [Osório diz: a escrita em Atenas]. Por volta da metade do século V e, provavelmente, mais cedo, havia um sistema bem estabelecido de escolas primárias. Frequentar a escola era o normal para meninos nascidos livres, embora não haja prova de que a freqüência escolar fosse obrigatória. A ampliação da educação para toda a sociedade ateniense que isso implicava não foi popular entre os que olhavam para o passado como para uma época de maior privilégio aristocrático nessas questões [Osório diz: a educação como prejudicial à hegemonia burguesa]. Píndaro (01.II.86-88) opunha aqueles cuja sabedoria vem por natureza (família e nascimento) àqueles que tiveram de aprender [Osório diz: no que “acreditava” também Platão]. Embora não se saiba ao certo a quem ele estava se referindo, pode-se, com razão, tomar isso como um lance na controvérsia Natureza-Educação, que era importante no período sofista (cf. também sua ode Nemeana, III, 41). Se aretê ou excelência, pode ser ensinada, então a mobilidade social é imediatamente possível [Osório diz: eis o pomo da discórdia e a má vontade contra os sofistas]; e é claro que Protágoras estava interessado exatamente nessa controvérsia Natureza-Educação quando escreveu: "ensinar exige ambos, Natureza e Prática" (DK 80B3; cf. B10).” [Osório diz: Frase de Protágoras]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 12-14, 66-67).
É Barbara Cassin quem diz:
“Assim o diálogo entre Sócrates e Teeteto autoriza, sem dúvida, para sempre, o sentido relativista e subjetivista da proposição de Protágoras: se a verdade se reduz para cada um à opinião que traduz sua sensação, Protágoras, segundo esse raciocínio, teria feito igualmente bem em dizer que "a medida de todas as coisas é o porco ou o cinocéfalo" (161c4s.).
Do conjunto dos diálogos de Platão se destaca então a figura doravante tradicional da sofística. Ela é desconsiderada em todos os planos. Ontológico: o sofista não se ocupa do ser, mas se refugia no não-ser e no acidente; lógico: ele não busca a verdade nem o rigor dialético, mas apenas a opinião, a coerência aparente, a persuasão, e a vitória na justa oratória; ético, pedagógico e político: ele não tem em vista a sabedoria e a virtude, tanto para o indivíduo quanto para a cidade, mas visa ao poder pessoal e ao dinheiro; literário mesmo, já que as figuras de seu estilo são apenas intumescências de um vazio enciclopédico. Para avaliar a sofística com a medida do ser e da verdade, é preciso condená-la como pseudo-filosofia: filosofia das aparências e aparências da filosofia.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 9).