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Poesia: deleite-se ou delete-me (28.08.15).

Maraãvilhosos,

Borboleta do Beto

 

Por que não devemos ter medo da morte.

 

 

Inicio com uma pergunta:

Por que temos medo da morte?

Alguns dizem que não têm. Outros (os suicidas) até aceleram na direção que leva ao seu encontro.

Regra geral, contudo, ninguém a quer por perto.

Mas existirá mesmo a morte? É outra pergunta a ser feita.

A morte seria uma interrupção da vida ou uma continuidade desta?

No meu parco conhecimento, oriundo de minhas poucas leituras (gostaria de ler bem mais do que consigo!), sempre me deparo com autores ocidentais – e somente leio estes, em especial por ler apenas em língua portuguesa e arranhar um pouco o castelhano, além de serem poucas as traduções dos orientais – dizendo, ao iniciarem seus escritos: “me restringirei ao Ocidente”!

Isso me deixa chateado e curioso!

Chateado por ter vontade de saber mais sobre o Oriente e curioso pelo fato dos ditos autores “parecerem” conhecedores das coisas do Oriente mas guardarem-nas para eles próprios!

Certo é que tenho pouco acesso às coisas que vêm de onde o sol nasce.

O que tenho observado na dicotomia Oriente/Ocidente, no que concerne ao tema sobre o qual ora tento escrever, é que no Oriente a morte é vista com olhares diferentes dos nossos, e não só por eles terem os olhos mais apertados. Parece que a morte não é vista como a vemos por aqui, como um mal, um castigo, uma punição, um sofrimento com todas as consequências maléficas que disso decorre.

Dizem alguns que “a morte é a única certeza que temos na vida”, pois ela, queiramos ou não, irá um dia bater na porta da nossa existência(?).

Os orientais, ao que sei, tratam melhor este assunto por terem aceito que a morte não interrompe a vida, mas é uma continuidade dela!

E por que ando pensando meio à Oriente?

Os estóicos falavam a respeito da "desunião" entre o homem e o mundo, e que a vida seria melhor no caso de haver união entre eles, até porque o homem e o mundo são a mesma coisa, creio eu.

E a minha crença acima afirmada veio de quando pensei melhor sobre algo que, aparentemente, não tinha nada a ver com o assunto!

Refiro-me ao ensinamento de Lavoisier, o químico francês que ensinou que “na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”.

Percebi, com ele e com outros que tudo na natureza é energia.

Percebi, também, que se tomarmos um corpo de um ser humano, e este exemplo serve para tudo, e o espremermos em um daqueles compactadores de carros, que fazem com que um automóvel não fique maior que um bloco de meio metro quadrado de aço e outros materiais, teremos muito líquido (água) e, certamente, alguns gramas de muitas matérias iguais aquelas espalhadas pelo mundo e em tudo o mais que há no mundo.

No corpo humano encontramos átomos que compõem tudo: terra, água, ar, ferro, pedra, doce, azedo, amargo, branco, preto, pesado, leve etc. (paro por aqui por ser a lista infindável, ou somente terá fim depois de que se nomeie todas as coisas do mundo, do cosmo, e isso faria com que esse escrito não tivesse fim).

Como não temos explicação para nada, apenas hipóteses, que aceitamos ou não, e que sobrevivem até que surja outra melhor, gosto muito daquela história, pois faz a arte entrar em nossas vidas, de que o homem veio do barro!

Sim, é possível que homem tenha vindo do barro, pois, como disse, o barro está em seu corpo, como no próprio barro e no homem existem todos os demais átomos que compõem todos os elementos que conhecemos.

O corpo, quando se decompõe, naturalmente devolve ao meio ambiente, ao mundo, ao cosmo, aqueles elementos que até então nele estavam reunidos (dos que achamos melhores aos piores). Sendo que esses elementos voltam a se integrar no mundo em outras formas. São as transformações de Lavoisier gerando energia.

Portando, a morte, algo tão natural e tão “certo” não nos deveria causar terror com a sua proximidade, familiaridade ou sua existência.

Alguém diria que respirar é um mal?

Ao contrário, não respirar é que pode ser um mal.

Nós, estando tudo funcionando normalmente, e sem gripe, não nos preocupamos com nossa respiração. Exceto quando conversamos sobre o tema, o que nos leva a ter “falta de ar”!

Se não nos preocupamos com respirarmos, por que nos preocupamos tanto com a morte?

É aí que entra a maldição das religiões, pelo menos daquelas sobre as quais, embora não as conhecendo, faço uma leve ideia.

É que a religião (e esse é tema difícil de se discutir, no sentido de conversar) é também um comércio e meio ou fim de manutenção ou obtenção ou conservação do Poder Político. Não vou por esse caminho, por enquanto e aqui e agora.

A maldição das religiões de que falo vem do medo, do terror que elas difundem sobre a questão da morte. A morte para elas é um mal, um castigo, que quando não vem naturalmente, vem por imposição delas mesmas sobre seus desafetos.

E o pior, dizem que após a morte é que a pessoa sofrerá mais ainda do que aquilo que já sofreu aqui na terra.

Embora não tenham nenhuma prova disso, dizem que o que espera pelo “cidadão” é um tonel de óleo fervendo, mármore em brasa, fogo constante e coisas do mesmo naipe.

Como não se desesperar com isso que nos é incutido desde a mais tenra infância e por toda a vida, exceto dos “excomungados” e “ateus” que resolvem pular fora desse circo de horrores e maldades? Mas aí começam a sofrer aqui na terra mesmo, já que os donos da verdade passam a investir contra quem pensa diferente deles.

Mudar um costume é coisa para muitas e muitas gerações!

Tanto é assim que ainda lemos os livros mais antigos e vemos suas atualidades!

O ser humano, parece-me, somente evoluiu em termos de tecnologia, em termos de costumes e humanidades ainda lemos os gregos e não saímos deles! Platão criou o inferno e os que lhe sucederam acharam que aquela bobagem é verdade e a aperfeiçoaram e a vendem, descaradamente.

A religião embora comercie e venda o terror, é boa para os governos, pois incutem em alguns que eles sofrem na terra, mas terão a recompensa no céu!

Mas eu não tinha dito que eles sofrerão no céu?

Sim, tinha!

E então?

Então é o seguinte: as religiões dizem: “la garantia soy yo”! Façam o que eu mando aí vocês terão um céu que é o paraíso!

Simples assim!

E o que é que as religiões querem que nós façamos, justamente tudo que não perturbe os governantes na e da terra, que esperemos pelo mundo justo após a morte que, justamente, ninguém prova que existe! E é por isso que os governo sempre toleram e incentivam as religiões.

Mas, mudemos de assunto pare nele continuar!

Um sofista chamado Crítias, há 2.500 anos, disse o seguinte

Portanto, se a lei impedia os homens de ações públicas de violência e eles continuavam a cometê-las em segredo, creio que homem de mente muito sagaz e sutil inventou para os homens o temor dos deuses, a fim de que houvesse algo para aterrorizar os maus ainda que agissem, falassem ou pensassem em segredo. Para isso introduziu a concepção de divindade. Existe, dizia ele, um espírito que goza de vida sem fim, que ouve e vê com sua mente, excessivamente sábio e onividente, portador de natureza divina. Ouvirá tudo o que se fala entre os homens e verá tudo o que se faz. Se estiveres tramando em silêncio o mal, este não ficará escondido aos deuses, pois são muito sagazes. Com esta estória apresentou o mais sedutor dos ensinamentos, dissimulando a verdade com palavras mentirosas. Por moradas, ele lhes deu o lugar cuja menção mais vigorosamente golpeia os corações dos homens, donde sabia ele, medos e temores caem sobre os mortais e vem ajuda para suas vidas ignóbeis, donde percebia os relâmpagos e os estrondos temerosos dos trovões, e a face e forma estrelada do céu bem trabalhada pela arte do tempo, donde também o meteoro incandescente faz o seu percurso e a chuva líquida desce sobre a terra. Com tais temores ele cercou a humanidade, e, dando, assim, por sua estória, à divindade uma bela casa em lugar apropriado, eliminou a falta de lei por ordenações... Assim sobretudo, penso eu, alguém persuadiu os homens a acreditar que existe a raça dos deuses.”.

Dessa leitura você por concluir as razões pelas quais esses caras chamados de Sofistas são tão odiados por alguns, fundamentalmente por quem não os conhece.

Disse tudo isso para pedir mais luzes (conhecimento) de você, que ora me lê, sobre ensinamentos que nos tirem o medo da morte.

Claro que isso não implica procurá-la, mas apenas aceitá-la de maneira calma, sem sofrimentos, pois, mais dia menos dia ela baterá na porta de todos e nos levará de volta para o mesmo barro de onde viemos, nos transformando em outras coisas, energias que desconheço, como todos desconhecemos, mas que, parece, fazem parte do ciclo e círculo que é o mundo e sua existência.

Quero ainda aprender a não ter medo da morte, pois com ele ou sem ele ela vai chegar, por que, então, sofrer por antecipação? Eu que poderia sofrer apenas um pouquinho, sofro um montão só de pensar em algo que é inevitável, como o respirar, por exemplo.

Então esperemos e torçamos para acontecer somente quando demos mais trabalho que prazer aos outros e a nós mesmos!

Lembremos: a morte não é o início, mas sim o fim do sofrimento, apesar de dizerem o contrário os profissionais do terror, que dizem “viver para salvar nossas almas”, mas antes surrupiam os nossos bolsos!

 

Drica” de leitura:

 

Abaixo um lindo e orientante/doutrinante poema de Ferriera Gullar, talvez o maior dos poetas brasileiros ainda vivos (felizmente)!

A poesia de Gullar é sensível para com o sensível e, acima de tudo, para com a vida do homem que caminha sobre a terra e, muitas vezes, da pior e mais sofrida maneira! Ferreira, com seus poemas tenta jogoar, e efetivamente, joga luz sobre os problemas sociais que, podem sim, embora neguem alguns, ser resolvidos, bastando que o homem olhe para o homem como um ser tão digno como ele próprio, que faça do outro um espelho onde goste de se ver.

Não gosto muito das crônicas do Gullar, penso que ele, nelas, não costuma ser imparcial, não aplica o princípio de que “o pau que bate em Francisco também deve bater em Chico”, mas, sua poema é de uma leveza e sensibilidade a toda prova!

Gullar está com uma nova edição (2015) de sua obra “Toda poesia”, pela Editora José Olympio, a qual, se possível, e para o pão da alma sempre devemos fazer um esforço, deve ser adquirida e lida com muito carinho, sempre mantida ao lado para consulta constante quando a alma desejar alegrar-se e dar força ao corpo para continuar na lida da vida!

(Salvo engano, no sítio da Amazon [http://www.amazon.com.br/Toda-Poesia-Ferreira-Gullar/dp/8503012537/ref=sr_1_1?s=books&ie=UTF8&qid=1440626163&sr=1-1&keywords=toda+poesia+ferreira+gullar] a obra está com o preço muito bom e convidativo).

Ferreira Gullar

(já na minha estante)

Boa leitura.

 

Abraços,

 

Osório

 

POEMEMOS:

 

Quem matou Aparecida?

História de uma favelada que ateou fogo às vestes

 

Aparecida, esta moça

cuja história vou contar,

não teve glória nem fama

de que se possa falar.

Não teve nome distinto:

criança brincou na lama,

fez-se moça sem ter cama,

nasceu na Praia do Pinto,

morreu no mesmo lugar.

 

Praia do Pinto é favela

que fica atrás do Leblon.

O povo que mora nela

é tão pobre quanto bom:

cozinha sem ter panela,

namora sem ter janela,

tem por escola a miséria

e a paciência por dom.

 

No dia que a paciência

do favelado acabar,

que ele ganhar consciência

para se unir e lutar,

seu filho terá comida

e escola para estudar.

Terá água, terá roupa,

terá casa pra morar.

No dia que o favelado

resolver se libertar.

 

Mas a nossa Aparecida

chegou cedo por demais,

por isso perdeu a vida

que ninguém lhe dará mais.

É sua história esquecida

de poucos meses atrás,

e essa vida perdida

de uma moça sem cartaz

que está aqui pra ser lida

porque nela está contida

a lição que aprenderás.

 

Já bem cedo Aparecida

trabalhava pra comer:

vendia os bolos que a mãe

fazia pra ela vender;

carregava baldes d'água

para banhar e beber.

Comida pouca e água suja

que até dá raiva dizer.

 

Da porta de seu barraco,

de zinco e madeira velha,

olhava o mundo dos ricos

com suas casas de telha.

Os blocos de apartamento

quase tocando no céu

dos quais nem em pensamento

um deles seria seu.

 

Daquele chão de monturo,

via o mundo dividido:

Do lado de cá, escuro,

e do lado de lá, colorido.

À sua volta a pobreza,

a fome, a doença, a morte;

e ali adiante a riqueza

dos que tinham melhor sorte.

Nossa Aparecida achava

que tinha era dado azar

porque ela ignorava

que o mundo pode mudar.

 

Já conhecia a cidade

da gente limpa e bonita,

meninas de sua idade

de seda e laço de fita.

Gente que anda de carro,

vive em boate e cinema,

que nunca pisou no barro,

que não conhece problema,

que pensa que o Rio é mesmo

Copacabana e Ipanema.

 

Que pensa ou finge pensar.

Porque se chega à janela,

se dá um giro, vê logo

o casario da favela,

a marca mais evidente

desta sociedade ingrata,

que a terça parte do Rio

mora em barracos de lata.

 

E assim foi que Aparecida

se tornou uma mocinha.

Falou pra mãe que queria

ganhar uma criancinha.

Já que boneca era caro

e dinheiro ela não tinha,

ter um filho era mais fácil

dela conseguir sozinha.

 

"Sozinha ninguém consegue!",

disse-lhe a mãe já com medo.

"Tira isso da cabeça,

ter filho não é brinquedo.

Favelada que tem filho

acaba a vida mais cedo".

 

Não podia Aparecida

entender essa verdade.

Queria ter um bebê

para cuidar com bondade,

para vestir bonitinho

como os que viu na cidade.

 

Tanto falou no desejo

de ter uma criancinha

que um dia uma lavadeira

que era sua vizinha

prometeu falar na casa

de um tal de dr. Vinhas,

casado com dona Rosa,

que ganhara uma filhinha.

 

Foi assim que Aparecida

mudou-se para Ipanema.

O ordenado era pouco

mas resolvia o problema.

Deixou a Praia do Pinto

e venceu o seu dilema:

ganhou um bebê bonito

cheirando a talco e alfazema.

Quando saiu com o embrulho

(dois vestidos e um espelho

redondo, de propaganda)

a mãe lhe deu um conselho:

"Veja lá por onde anda.

Cuidado com homem velho

e português de quiranda.

Pra rico é fácil ter filho;

pra pobre, a vida desanda".

 

Mas Aparecida estava

entregue a sua alegria.

Só pensava na menina

de que ela cuidaria,

a boneca de verdade

que ela enfim ganharia.

E assim passou cantando

aquele primeiro dia.

 

Foi muito bem recebida

pela patroa e o patrão.

Ganhou um quarto pequeno

e uma cama de colchão.

Quarto escuro, colchão duro,

mas como querer melhor

quem sempre dormiu no chão?

 

A vida de Aparecida

corria tranquila e bela.

Ainda por cima seu Vinhas

simpatizava com ela,

indagava de sua vida

e das coisas da favela.

 

Um dia pegou-lhe o braço

e puxou-a para si.

Lhe disse: "Me dá um abraço,

que eu gosto muito de ti".

Largou-a ao ouvir os passos

de alguém que vinha pra ali.

 

Mas de noite ele voltou.

Deitou-se ao lado dela

e ela não se incomodou.

Passou a mão nos seus peitos,

e Aparecida gostou.

Deitou-se por cima dela

e suas calças tirou.

Aparecida nem lembra

o que depois se passou.

E tanto se repetiu

que ela até se habituou.

 

Mas lá um dia a patroa

abriu a porta e os pegou.

Já era de manhã cedo,

Vinhas quase desmaiou.

A mulher fez que não viu,

tranquilamente falou:

"Compre-me um litro de leite,

pois o leiteiro atrasou".

 

Aparecida saiu

sem saber o que fazer.

Quando voltou, no seu quarto

tinha coisa pra se ver:

a patroa já chamara

um guarda para a prender.

"Ela roubou estas jóias,

que nem bem soube esconder" -

disse mentindo a patroa.

Aparecida foi presa

sem nada poder dizer.

 

Para o SAM foi conduzida

depois de muito apanhar.

Um dia ali esquecida

começou a reparar

que em sua entranha uma vida

começara a despertar.

Quando o guarda da prisão

descobriu-lhe a gravidez,

foi dizer à Direção,

que a retirou do xadrez

para evitar complicação.

"Vá se embora, sua puta,

chega de aporrinhação".

 

Aparecida voltou

pro barraco da favela.

A mãe estava doente

sem saber notícia dela.

Cuidou da mãe como pôde

e conseguiu se empregar.

Trabalhou até que um dia

numa fila de feijão

perdeu as forças, caiu,

e teve o filho no chão.

Da casa onde trabalhava

logo foi mandada embora.

"Empregada que tem filho

não serve, que filho chora".

 

Em outras casas bateu

mas de nada adiantou.

Depois de muito vagar,

pra casa da mãe voltou.

Mas o problema da fome

assim não solucionou.

Não teve outra saída:

na prostituição entrou.

 

Ficava noites inteiras

rodando pelo Leblon

para apanhar rapazinhos

que sempre pagavam algum

e que não tinham o bastante

pra frequentar o bas-fond.

 

Até que um dia encontrou

um rapaz que gostou dela

que se chamava Simão

e morava na favela.

Decidiram viver juntos

e a vida ficou mais bela.

 

Bela como pode ser

a vida de um favelado

morando em cima da lama

num barraco esburacado

trabalhando noite e dia

por um mísero ordenado.

 

Mas Simão e Aparecida

um ao outro se ampararam.

Com as durezas da favela

de há muito se habituaram:

uniram suas duas vidas

e depressa se gostaram.

 

Ela lavava pra fora

e cuidava do filhinho

que, de mal alimentado,

era magro e doentinho

mas que dela merecia

todo desvelo e carinho.

 

Simão, que era operário,

trabalhava numa usina.

Gastava sua mocidade

numa soturna oficina

onde o serviço é pesado

e o dia nunca termina.

Mas o amor de Aparecida

viera abrandar-lhe a sina.

 

Simão ganhava tão pouco

que mal dava pra comer,

menos que o salário mínimo

que está na lei pra inglês ver...

Nem sempre tinha jantar

nem o que dar de beber

ao menino que chorava

sem poder adormecer.

 

Aparecida e Simão

deitados ali do lado

ouviam o choro do filho

fraquinho e desesperado

que já no berço sentia

o peso cruel e injusto

desse mundo desgraçado.

 

E eis que um dia Simão

participou de uma greve.

Veio a noite e Aparecida

dele notícia não teve.

Os companheiros disseram

que a policia o deteve.

Ela correu à polícia

mas ali nada obteve.

 

Voltou chorando pra casa

sem saber o que fazer.

Debruçada na janela

viu o dia amanhecer:

um dia claro mas triste

como se fosse chover.

 

Sentia-se desemparada

naquela casa vazia.

Por que duravam tão pouco

suas horas de alegria?

Se Simão não mais voltasse

o que é que ela faria?

 

Esperou que ele voltasse.

Os dias passaram em vão.

O menino já chorava

sem ter alimentação.

Ela já nem escutava

tamanha a sua aflição.

 

Quase imóvel, dia e noite,

ficou assim na janela

à espera de que Simão

voltasse outra vez pra ela

fazendo o seu coração

sentir que a vida era bela,

por pouco que fosse o pão,

triste que fosse a favela.

 

Quanto tempo se passara?

Quanto dia se apagou?

Até o menino calara,

até o vento parou.

Aparecida repara

que alguma coisa acabou.

 

Era uma coisa tão clara

que ela própria se assustou.

Por que calara o menino?

Que mão nova o afagou?

E sobre o corpinho inerte

chorando ela se atirou...

 

Chamava-se Aparecida

e chorava ali sozinha.

Mal chegara aos 15 anos

a idade que ela tinha.

Chorava o seu filho morto

e a sua vida mesquinha.

Uma criança chorando

sobre outra criancinha.

 

Foi assim que Aparecida

sem pensar e sem saber

derramou álcool na roupa

pra logo o fogo acender.

E feito uma tocha humana

foi pela rua a correr

gritando de dor e medo

para adiante morrer.

 

Acaba aqui a história

dessa moça sem cartaz

que ficaria esquecida

como todas as demais

histórias de gente humilde

que noticiam os jornais.

 

Pra concluir te pergunto:

Quem matou Aparecida?

Quem foi que armou seu braço

pra dar cabo da vida?

Foi ela que escolheu isso

ou a isso foi conduzida?

Se a vida a conduziu

quem conduziu sua vida?

 

Por que existem favelas?

Por que há ricos e pobres?

Por que uns moram na lama

e outros vivem como nobres?

Só te pergunto estas coisas

para ver se tu descobres.

 

Se não descobres te digo

para que possas saber:

o mundo assim dividido

não pode permanecer.

Foi esse mundo que mata

uma criança ao nascer,

que negou à Aparecida

o direito de viver.

 

Quem ateou fogo às vestes

dessa menina infeliz

foi esse mundo sinistro

que ela nem fez nem quis

- que deve ser destruído

pro povo viver feliz.

 

Autor: Ferreira Gullar, em “Toda poesia”, José Olympio, 2015, p. 168/179.

 

e,

 

Lembranças

 

Vai, que não me deixas perceber,

O quanto tenho em minhas mãos,

Para cantar com a intenção,

De afastar a solidão.

 

Ah, quanto quero me dizer,

Que vai passar toda aflição,

Mas o que vem no coração,

É o tom menor dessa canção.

 

São pensamentos que levantam pó,

Tantas ideias que me deixam só,

Por um segundo uma lembrança antiga,

Um sinal de não estar perdida em meu querer.

 

Sim, tudo vai se esclarecer,

Há uma razão para perder,

Mudar de rumo sem querer,

Outros tempos pra viver.

 

Vai, não quero mais sentir em vão,

Quero calar meu coração,

Desamarrar as minhas mãos,

Me transformar na escuridão.

 

São pensamentos que levantam pó,

Tantas ideias que me deixam só,

Por um segundo uma lembrança antiga,

Um sinal de não estar perdida em meu querer.

 

Autora: Ana Previtalli.

 

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