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O asno de ouro - Apuleio

O livro de Apuleio, em Portugal, saiu com o título "O burro de ouro".

É  um livro divertissímo, daqueles que quando lemos na rua as pessoas pensam (nos julgam) que somos doidos, por rirmos constantemente para "um livro".

Não me recordo de ter uma edição nova. Vejam que a minha, logo abaixo, além de não ter data, está maltrada, porém já a comprei assim em um sebo. Mas a qualidade não era boa (a cola da lombada já de desfez). Foi publicado em formato de bolso pela antiga "Editora de Ouro", a atual Ediouro.

Ler essa obra é fantástico. Nos tira qualquer peso dos ombros por deixar a alma leve e o espírito elevado.

 

O asno (ou burro) é um artista de primeira linha.

Abaixo um trecho da obra, mas especificamente o mito de "Eros e Psiquê". A leitura da parte, estimulará a leitura do todo.

(Eros, na mitologia romana é chamado de Apolo).

Até mais,

Osório

 

 

O Asno De Ouro   Apuleio

 

 

“XXX. "Então, a mim, antiga mãe da Natureza, origem primeira dos elementos, nutriz do Universo, Vênus, reduziram-me a esta condição de partilhar com uma mortal as honras devidas à minha majestade! E meu nome consagrado no céu é profanado pelo contacto com impurezas terrestres. Será preciso, aparentemente, na comunhão equívoca das homenagens prestadas ao meu nome, ver a adoração me confundir com uma substituta? Aquela que por toda a parte apresentará minha imagem é uma moça que está para morrer. Foi em vão que aquele pastor, cuja imparcial justiça foi aprovada pelo grande Júpiter, me preferiu, pelos meus atrativos sem par, às deusas mais eminentes. Porém, não se rejubilará por muito tempo essa, quem quer que ela seja, que me usurpou as honrarias. Poderei, com essa mesma beleza à qual ela não tem direito, fazer com que se arrependa."
"Imediatamente, chamou o filho, o menino alado, esse perverso velhaco que, agravando com sua má conduta a moral pública, armado de tochas e de flechas, corre daqui e dali durante a noite, pela casa dos outros, incendeia todos os lares, comete impunemente os piores escândalos, nunca faz coisa boa. Se bem que êle já fôsse impudente por natural velhacaria, ela o excitou ainda mais com seus discursos, conduziu-o à cidade de que falamos, e mostrou-lhe Psique — tal era o nome da menina. (PSIQUÊ)

XXXI. "Fez-lhe também o completo relato dessa rivalidade em beleza. Por fim, gemendo, trêmula de indignação, disse: "Eu te conjuro pelos laços do amor materno, pelas doces feridas de tuas flechas, pelas deliciosas queimaduras da tocha que carregas, vinga aquela que te deu à luz, mas vinga-a completamente, e castiga sem piedade essa bela rebelde. Consente apenas — e isto somente me satisfará — em fazer de maneira que essa virgem seja possuída de ardente amor pelo derradeiro dos homens, um homem que a Fortuna tenha amaldiçoado em sua classe, seu patrimônio, sua própria pessoa; tão abjeto, em uma palavra que, no mundo inteiro, não se encontre miséria que à sua se compare."
"Ela o disse. Com os lábios entreabertos, beijou o filho longamente, àvidamente. Depois, ganhando o lugar mais próximo da praia onde a onda morre, calcou com os pés de rosa a crista de espuma das vagas cintilantes, e ei-la bem depressa levada sobre a clara superfície do mar profundo. Mal teve tempo de exprimir a sua vontade, e, como se fosse uma ordem dada antecipadamente, os deuses marinhos apressaram-se a servi-la. Aqui as filhas de Nereu, cantando em côro, e Portuno, de barba azulada, tôda eriçada, e Salácia, com as pregas da veste pesadas de peixes, e Palêmon, o pequeno auriga, conduzindo um delfim; acolá, pulando sôbre o mar, as tropas dos Tritões: um dêles docemente sopra em sua concha sonora, outro vela com um tecido de sêda a flama do sol importuno; este mantém um espelho diante do olhar da rainha; aquêles nadam aos pares, atrelados ao seu carro. Tal foi a escolta que acompanhou Vênus em seu passeio pelo Oceano.

XXXII. "Entrementes, Psiquê, com toda a sua estonteante beleza, não tirava proveito nenhum dos seus encantos. Todos a contemplavam, todos a louvavam, mas ninguém, nem rei, nem príncipe, e, à falta destes, nem homem da plebe desejava sua mão ou se apresentava para obtê-la. Admirava-se a sua face de deusa, mas era como a uma estátua, obra de arte perfeita, que a admiravam. Havia muito tempo que suas irmãs mais velhas, cuja beleza comum em nenhuma parte fora proclamada pelo público, concedidas a pretendentes reais, tinham feito brilhantes casamentos. Psiquê, virgem desdenhada, ficava em casa, a chorar seu abandono e sua solidão. Corpo dolente, coração machucado, detestava em si a beleza que constituía o encantamento de nações inteiras. Afinil, o triste pai da desventurada jovem, suspeitando haver contra ela alguma celeste maldição, e temendo ter incorrido na cólera do alto, interrogou o antigo oráculo do deus de Mileto. Ofereceu a essa poderosa divindade preces e vítimas, pediu para a desdenhada virgem um himeneu (casamento?)  e um marido. Apolo, apesar de grego e jônio, em consideração pelo autor da nossa milesiana, entregou êste oráculo em latim:

Montis in excelsi scopulo, rex, siste puellam
ornatam mundo junerei thalami.
Nec speres generum mortali stirpe creatum,
sed saeuum atque ferum uipereumque malum,
quodo pinnis uolitans super aethera cuncta fatigat,
flammaque et ferro singula debilitat,
quod trernit ipse Ious quo numina terrificantur,
fluminaque horrescunt et Stygiae tenebrae.

(Sôbre o rochedo escarpado, / suntuosamente enfeitada, / expõe, rei, a tua filha, / para núpcias de morte. / Então, ó rei, não esperes / para teu genro, criaturas / originadas de mortal estirpe, / mas um monstro cruel e viperino, / que voa pelos ares. / Feroz e mau, não poupa ninguém. / Leva por tôda parte o fogo e o ferro, / e faz tremer a Júpiter, / e é o terror de todos os deuses, / e apavora até as águas do inferno, / e inspira terror às trevas do Estige.)

XXXIII."O rei, feliz anteriormente, depois que recebeu o santo vaticínio voltou para casa queixoso, com a alma triste e explicou à mulher o que havia prescrito o infausto oráculo. Lamentaram-se e choraram, os lamentos lhes encheram os dias. Porém, o prazo fatal apressava a execução trágica. Prepararam-se para a infortunada virgem os aparatos das núpcias de morte. A chama das tochas escureceu com a fumaça e morreu sob a cinza. Os sons da flauta nupcial foram substituídos pelos plangentes acordes da melopéia lídia, o alegre canto de himeneu acabou em lúgubres queixumes, e a esposa da manhã enxugava as lágrimas no seu próprio véu. A triste sorte que pesava sobre aquela casa provocava o pranto de simpatia da cidade inteira, e a dor generalizada se traduziu logo pela proclamação de luto público.

XXXIV. "Mas a necessidade de obedecer às advertências celestes exigiu que Psiquê, a pobrezinha, sofresse a pena que a esperava. Ultimaram, então, em profunda tristeza, os solenes preparativos desse tálamo (leito nupcial) fatal, e, seguido de todo o povo, o cortejo se pôs em marcha, acompanhando esse cadáver vivo. Psiquê, em lágrimas, não participava de suas núpcias, mas de seu funeral. Entrementes, os pais, acabrunhados e cheios de mágoa com a desgraça, não se resolviam a consumar o nefando crime. Foi a própria filha que os exortou com estas palavras:
"Por que infligir à vossa infeliz velhice o suplício de contínuo pranto? Por que êsse alento, que, mais que vosso, é meu, atormentar, sem tréguas, com clamores? Por que manchar com lágrimas inúteis um rosto para mim venerável? Por que, em vossos olhos devastados, obscurecer a claridade dos meus? Por que arrancar vossos cabelos brancos? Por que bater no peito, nos seios santos por mim? Aí está para vós o prêmio glorioso de minha egrégia formosura. É a inveja sôbre-humana que vos desfere o golpe letal, e tarde demais vos dais conta disto. Quando as nações e os povos nos prestavam honras divinas, quando unânimemente me chamavam nova Vênus, então era preciso gemer, era preciso chorar, então era preciso vestir luto, como se eu já vos tivesse sido arrebatada. Hoje eu compreendo. Hoje eu vejo. Foi o nome de Vênus, só, que me perdeu. Levai-me, pois, colocai-me no rochedo que a sorte me destinou. Tenho pressa de consumar essa feliz união, tenho pressa de ver o nobre esposo. Para que adiar, para que me furtar ao encontro daquele que nasceu para a ruína do Universo?"

XXXV. "Assim falou a virgem. E com passo firme se misturou à multidão que formava seu cortejo. Atingiram o rochedo marcado, na escarpada montanha, e no alto cume colocaram a moça. Depois, todos a abandonaram. Para longe atiraram as tochas nupciais, que haviam iluminado a caminhada e que tinham antes apagado com suas lágrimas, e, de cabeça baixa, retomaram o caminho de suas casas. Os desgraçados pais, acabrunhados pela calamidade, fugiram da luz, e, no fundo de seu palácio, encerraram-se numa noite eterna. Psiquê, entrementes, apavorada e trêmula no alto do seu rochedo, não parou de chorar. O doce hálito do Zéfiro, caricioso, agitou de um leve tremor a barra do seu vestido, e o encheu de pregas. Soergueu a virgem com um movimento suave e, com tranqüilo sôpro, a levou serenamente ao longo da parede rochosa. Ao pé desta, no escavado vale, êle a depositou deitada gentilmente no leito da relva florida.

LIVRO V

I."Psiquê, nessa ervinha tenra, lânguidamente estendida sôbre o leito da relva úmida de orvalho, serenou de sua perturbação e docemente adormeceu. Depois de um plácido sono reparador, ressurgiu-lhe o ânimo. Viu um bosque plantado de árvores frondosas e uma fonte cuja onda era de vidro translúcido. No meio do bosque, junto do lugar onde corria o manancial, havia um palácio real, edificado não por mão de homem, mas por arte divina. Não poderíeis duvidar, mal assomásseis à entrada: tínheis diante de vós a luxuosa e aprazível residência de um deus. Os tetos com lavores de cedro e de marfim esquisitamente esculpidos, sustinham-se sobre colunas de ouro. As paredes, revestidas de prata cinzelada, mostravam desde a entrada feras e outros animais. Certamente fora um semideus ou mesmo um deus, que animara com arte sutil essa fauna de prata. A pavimentação fôra feita de pedras preciosas, diminutas, habilmente colocadas, formando desenhos variados. Felizes, decerto, duas e três vezes felizes aqueles cujos pés descansam nas gemas e nas pérolas. As outras partes da casa, por mais longe que se estendessem, tanto em largura como em comprimento, eram de preço inestimável. Todas as paredes, feitas de blocos de ouro maciço, resplandeciam com seu próprio brilho, de tal modo que se iluminariam por si mesmas se o Sol lhes recusasse a sua luz. Tanto os quartos como as galerias, como os portais, fulguravam. Riquezas que enchiam a casa, correspondiam a essa magnificência. Dir-se-ia, com razão, que, para permanecer entre os homens, o grande Júpiter construíra ali um palácio celeste.

II."Atraído pela beleza desses lugares, Psiquê se aproximou. Atreveu-se a franquear o portal e, seduzida logo pelo interesse de tão formoso espetáculo, examinou cada coisa atentamente. Do outro lado do palácio, viu os pavimentos de uma arquitetura grandiosa, onde se acumulavam tesouros reais. Nada havia que ali não se encontrasse. Porém, mais prodigioso que essas imensas riquezas, tão espantosas por si mesmas, era que não houvesse nem cadeia, nem fechos, nem guardas para defender esse tesouro vindo do mundo inteiro. Psiquê olhou para tudo, com volúpia, eis senão quando vem até ela uma voz destituída de corpo: "Por que senhora, tanto espanto à vista deste esplendor? Tudo isto te pertence. Entra no quarto, deita-te no leito, repousa os membros fatigados, e, quando quiseres, pede um banho. Nós, estas de quem ouves a voz, somos tuas escravas, executaremos apressadamente as tuas ordens, e, acabado o cuidado com a tua pessoa, um festim real te será destinado, e não se fará esperar."

III."Psiquê reconheceu nessa felicidade o cuidado de uma providência divina. Dócil aos avisos da voz incorpórea, dissipou a fadiga com um sono, seguido de um banho. Depois, de súbito, percebeu junto dela um móvel disposto em forma de semicírculo. Os arranjos de um repasto fizeram-na pensar que ele estava colocado ali para ela, a fim de que se restaurasse, e, de boa vontade, pôs-se à mesa. Logo, vinhos semelhantes ao néctar, e bandejas carregadas de iguarias variadas e abundantes, foram colocados diante dela, sem ninguém para fazer o serviço, e impelidos somente por um sopro. Ela não vislumbrava nenhum ser, apenas ouvia palavras vindas de alguma parte e não tinha senão vozes como servas. Depois de um copioso festim, entrou alguém que cantou, sem se deixar ver; um outro dedilhou a cítara e, do mesmo modo, permaneceu invisível. Então um grande número de vozes modulou um concêrto, e, se bem que nenhum ser humano aparecesse, seus ouvidos confirmaram a presença de um côro.

IV. "Terminados êsses prazeres, viu Psiquê que caíra a noite, e foi-se deitar. Era noite alta, quando um ligeiro rumor lhe chegou ao ouvidos. Temendo então por sua virgindade, estremeceu medrosa, e mais que com outra desgraça qualquer, apavorou-se com o que ignorava. E eis que se aproxima o marido desconhecido. Subiu ao leito, fez de Psiquê sua mulher, e antes que surgisse a luz do dia, partiu apressado. Logo as vozes, prontas junto do quarto, prestaram seus cuidados à recém-casada, da qual fôra imolada a virgindade. Como quis a natureza, à novidade do prazer o hábito acrescentou uma doçura a mais, e o som da misteriosa voz consolava-a da sua solidão.
"Entretanto, seus pais envelheciam, consumidos sem descanso pelo luto e pela aflição, enquanto o rumor da aventura se espalhava ao longe; e, então, suas irmãs mais velhas souberam de tudo. Imediatamente, na tristeza e na desolação, abandonaram o lar e, cada qual mais afoita, correram para junto dos pais, para vê-los e levar-lhes palavras de afeição.

V. "Naquela noite, o marido, dirigindo-se à sua Psiquê (pois, embora invisível, podia ser ouvido e tocado): "Psiquê", disse-lhe, "dulcíssima e querida espôsa minha, a Fortuna, no seu cru rigor, te ameaça com um perigo mortal. Vela e guarda-te cuidadosamente, eis o meu aviso. Tuas irmãs, que te acreditam morta, em sua perturbação procuram teu rastro, e chegarão logo ao rochedo que tu sabes. Se, por acaso, vires que elas chegam, ouvires lamentos, não respondas, olha mesmo para outra direção, sob pena de me causar uma grande dor, e a ti o pior dos desastres."
"Psiquê concordou. Empenhou-se em fazer a vontade do marido. Mas quando, juntamente com a noite, aquele desapareceu, passou a pobrezinha todo o dia em lágrimas e em prantos, repetindo que nessa hora tinha sua vida se acabado, pois que, na opulenta prisão em que estava encerrada, privavam-na de todos os contatos, de todas as relações com seres humanos. E quando suas próprias irmãs se afligiam por ela, não poderia reconfortá-las, nem vê-las sequer. Não tomou banho, para se refazer, nem alimento, nem nada do que restaura as fôrças; apenas chorava abundantemente, e assim se retirou para dormir.

VI. "Uns instantes depois, pouco mais cedo que de costume, o marido se deitou ao seu lado, tomou-a entre os braços, ainda banhada em lágrimas, e murmurou, ralhando: "Era isso que prometias, minha Psiquê? Como confiar em ti, de agora em diante? O que esperar de ti? Dia e noite, e até nos braços do esposo, não cessas de te atormentar. Vai, então. Faze o que queres, e satisfaz, para desgraça tua, as exigências do teu coração.Lembra-te, no entanto, das minhas sérias advertências, quando, tarde demais, te arrependeres."
"Então, à fôrça de súplicas e ameaçando morrer, arrancou ao marido a permissão tão desejada de ver as irmãs, de lenir seu luto, de conversar com elas. E não contente de ceder dessa maneira às instâncias da esposa tão recente, ele concedeu-lhe mais, que lhes fizesse presente de quanto ouro, e quantos colares quisesse. Mas recomendou com insistência, e de maneira a assustá-la, que não procurasse conhecer a figura do marido, jamais, mesmo que suas irmãs lhe dessem o pernicioso conselho de fazê-lo. Sua curiosidade sacrílega trar-lhe-ia infelicidade e perdição, e a privaria, para sempre, de seus abraços. Psiquê agradeceu ao marido e disse, mais contente: "Mas não! Antes cem vezes morrer que não mais gozar do nosso dulcíssimo conúbio. Pois eu ardentemente te amo, e te quero tanto quanto à minha vida, quem quer que tu sejas. Não. Nem mesmo Cupido é comparável a ti. Entretanto, eu te imploro, eu te suplico, tu podes conceder-me ainda isto: ordena a Zéfiro, teu servidor, que transporte minhas irmãs pelo mesmo caminho pelo qual eu vim e que mas traga aqui." Cobrindo-o de perturbadores beijos, e emocionando-o com ternas palavras, e enlaçando-o blandiciosa, acrescentou às carícias nomes como: "meu queridinho, meu marido, doçura da alma da tua Psiquê". O marido sucumbiu à força e ao poder de Vênus, às palavras de amor murmuradas em voz baixa. Cedendo, apesar de o lamentar, prometeu tudo quanto ela quis. De resto, aproximava-se o dia, e ele se desvaneceu entre os braços da mulher.

VII. "Entretanto, as duas irmãs, tendo sabido qual era o rochedo e o lugar onde tinha sido Psiquê abandonada, para lá se dirigiram, às pressas, e lá choraram, bateram no peito, clamaram tanto, que seus brados repetidos ecoavam nas pedras e nas rochas. E como chamassem por seu nome a desgraçada irmã, ao agudo ruído de suas queixas estridentes que desciam da montanha, Psiquê, perdida e trêmula, atirou-se para fora de casa: "Por que", disse ela, "vos acabais sem motivo, com tantos dilacerantes lamentos? A causa de vosso luto está aqui diante de vós. Terminai vossos fúnebres gemidos, secai essas faces, por tanto tempo orvalhadas de lágrimas, pois que àquela que pranteais podeis agora abraçar."
"Chamou então Zéfiro e lhe transmitiu a ordem do marido. Dócil ao mando, êle as soergueu com um sôpro sereno, e, sem dificuldade, as conduziu ao seu destino. Ei-las agora que se abraçam e trocam beijos impacientes, saboreando a doçura de estarem juntas. Lágrimas voltam ao apêlo da alegria. "Mas este aqui é o meu teto e nosso lar", disse Psique. "Entremos. Nada de desgostos agora, e que vossos corações se refaçam de sua aflição em companhia de vossa Psiquê."

VIII."Falando-lhes assim, mostrou-lhes as imensas riquezas da casa de ouro, fê-las ouvirem o povo de vozes que a servia, ofereceu-lhes, para se restaurarem, um banho luxuoso, e os refinamentos da mesa feita para os imortais. Saciadas com essa profusão de riquezas verdadeiramente celestiais, começaram elas, no fundo do coração, a nutrir pensamentos de inveja. Uma delas começou a fazer, com insistência, perguntas mais precisas: quem era o dono dessas divinas maravilhas, e quem era o seu marido? Não infringiu Psiquê, absolutamente, as prescrições conjugais, nem as deixou escapar do segredo do seu coração. Inventou no momento que era um belo moço, do qual uma penugem de barba sombreava há pouco tempo as faces. Ocupava-se frequentemente em caçar nos campos e nas montanhas. Depois, temendo que a conversa se prolongasse e ela deixasse escapar, por inadvertência, o que resolvera calar, carregou-as de ouro trabalhado, de colares de pedrarias, depois, sem esperar mais, chamou Zéfiro e as confiou para que as reconduzisse, o que foi feito no mesmo instante.

IX."As excelentes irmãs, entrando em casa, cada vez mais devoradas pelo fel ardente da inveja, conversavam com barulhenta animação. Por fim, uma se exprimiu assim: "Aí estão, oh! iníqua Fortuna, tua cegueira e tua injustiça! Por que aprovaste que filhas de um mesmo pai e da mesma mãe tivessem sortes tão diversas? Nós, as mais velhas, fomos entregues a estrangeiros, para sermos suas escravas. Banidas do lar e mesmo da nossa pátria, levamos, longe dos pais, uma vida de exiladas. A última que veio, fruto tardio de uma fecundidade que ela esgotou, possui imensas riquezas, com um deus por esposo, e nem sabe usar, como é preciso, essa abundância. Tu viste, minha irmã. Quantos colares, valiosos, jogados pela casa! E brilhantes tecidos, e faiscantes pedrarias, sem falar desse ouro sobre o qual se pisa, por toda a parte. Se o marido que tem é tão belo quanto ela pretende, não haverá hoje, no mundo inteiro, mortal mais feliz. Quem sabe mesmo se, com a crescente intimidade e a força do amor que avulta, o deus seu esposo não chegue até a torná-la uma deusa? Ah! sim, vê-se que é isto, pelo seu ar, sua atitude. Desde agora ela aspira a subir mais alto, e tudo indica a deusa na mulher que tem vozes por escravas e que manda no vento. Enquanto que a mim, para minha desgraça, a sorte deu um marido mais velho do que meu pai, mais calvo que uma abóbora, um anão mais miúdo do que um menino, e que vigia tudo, trazendo tôda a casa debaixo de ferrolhos e correntes."

X."A outra  replicou:  "E  o  meu, então! Entrevado,   torcido de reumatismo, e, por esta razão, não prestando senão raríssimas homenagens a Vênus, eis o marido que eu aguento.     Fricciono continuamente seus dedos deformados e endurecidos  como pedra. Compressas repugnantes, panos sórdidos, fétidos cataplasmas queimam estas mãos delicadas. Não tenho o ofício de espôsa, mas o penoso emprego de médica. Vê-se com que paciência, ou melhor, para dizer francamente o que sinto, com  que servilismo suportas essas coisas.Mas  eu, eu não poderei  suportar mais ver tal felicidade concedida a uma indigna.     Lembra-te, que ostentação, que arrogância na sua conduta  a  nosso respeito! Que insolente exibição do seu fausto, como  deixou transparecer o orgulho que lhe enche o coração! E de tantas riquezas, atirou-nos algumas migalhas, com dó.     Depois, logo depois, enfadada com a nossa presença,nos mostrou a porta da rua, mandou que o vento nos varresse, ou antes, que nos soprasse. Não quero ser mulher, e nem respirar mais, se não a precipitar do alto da sua abundância. Se tu também,  como é devido, sentes a afronta, procuremos as duas um plano de conduta enérgico. Primeiro de tudo, não mostremos nada a nossos pais, nem a quem quer que seja, disto que levamos.    Ignoremos mesmo se ela ainda está viva. Já foi suficiente  termos  nós  visto o que  vimos, sem precisarmos ir aos nossos  pais, e pelo mundo inteiro, trombetear a feliz notícia. Pois eles não serão felizes, se ninguém lhes conhecer as riquezas. Ela aprenderá que não somos suas servas,  mas suas irmãs mais velhas.Por ora retornemos aos nossos pobres lares, que pelo menos são sóbrios, vamos para junto de nossos maridos.    Deixemos passar algum tempo, refutamos. Vejamos se nos pomos em condições de nos tornar mais fortes, para castigar o orgulho."

XI. "As duas malvadas concordaram, achando excelente esse pérfido plano. Esconderam todos os preciosos presentes, e, arrancando os cabelos e arranhando as faces — tratamento bem merecido —, recomeçaram hipocritamente a chorar.     Assim, reavivaram a dor dos pais, dos quais tiraram a  esperança,e regressaram às pressas para suas casas, sufocadas de louca raiva, para maquinar uma infernal astúcia, um ímpio atentado contra a irmã inocente.
"Entrementes, recebia Psiquê novas advertências do desconhecido marido, durante os seus encontros noturnos.    "Tu vês", dizia-lhe, "quanto perigo te ameaça? A Fortuna te move, à distância, uma guerra de escaramuças. Se não te mantiveres vigilante, ela travará logo um combate corpo a corpo. Pérfidas lôbas se esforçam para te apanhar numa armadilha abominável e para te persuadirem a conhecer meu rosto, que é tudo quanto querem. Ora, este rosto, eu te previno sempre, se o vires uma vez, nunca mais o verás. Se, então, futuramente, vierem aqui essas bruxas detestáveis,  como sei que virão, armadas de culpadas maquinações, recusa-te a conversar com elas. Ou, se isso é mais do que pode suportar tua natural candura e a ternura do teu coração, pelo menos a respeito do teu marido não escutes nada, não respondas nada.    Nossa família se acrescenta, gera-se uma criança no teu útero; divina será se souberes calar e conservar nossos segredos, mortal se os profanares."

XII."A esta nova, Psiquê, tonta de felicidade, bateu palmas, consolada ao pensamento da divina progenitura. Aturdia-se com a gloriosa esperança desse penhor prometido, e rejubilava-se com a dignidade que lhe conferia o título de mãe. Contava ansiosamente os dias que se somavam e os meses que fugiam, e, portadora novata de um fardo desconhecido, maravilhava-se de que, com uma breve picada, seu ventre se tivesse locupletado tão incrivelmente. Mas já aquelas pestes, aquelas Fúrias horríveis, esguichando o seu veneno de víboras, e animadas de uma pressa ímpia, atravessavam o mar. Então, uma vez mais, o intermitente marido preveniu sua Psiquê: "O último dia e o têrmo fatal chegaram. Um adversário, que é do teu sexo, e um inimigo, que é do teu sangue, já agarraram as armas, levantaram acampamento, alinharam as tropas e deram o sinal de combate. Tuas criminosas irmãs já desembainharam o gládio e se preparam para mergulhá-lo em tua garganta. Ah! Quantos desastres nos ameaçam, dulcíssima Psiquê! Tem piedade de ti e de nós. Por uma religiosa continência, livra a nossa casa, livra teu marido, livra-te a ti mesma e a esse pequeno ser que nos pertence, das ruínas e do infortúnio  que nos  ameaçam. E a essas celeradas mulheres às quais um ódio homicida fez calcar aos pés os laços de sangue, o que  não  te permite mais  chamá-las  de irmãs,  evita  vê-las e ouvi-las, quando tais sereias, debruçadas no cimo da rocha, fizerem ressoar as pedras com seus funestos chamados."

XIII. "Psiquê respondeu com a voz entrecortada de soluços e o rosto lavado de lágrimas: "Parece-me que há muito  tempo, já, podias ter percebido a minha discrição e a minha  consciência. Aprovarás igualmente, no momento, a minha firmeza de ânimo. Assim, ordena só uma vez mais, a Zéfiro, que desempenhe essa incumbência, pois, na falta de contemplar teu sagrado rosto, o que me é recusado, deixa que eu veja ao menos minhas irmãs. Por essa cabeleira perfumada, espalhada em torno de tua fronte; por essas faces macias e de linhas suaves, que se assemelham às minhas; por esse peito, onde queima uma  secreta flama; pelo desejo que eu tenho de conhecer tua face ao menos nesta criaturinha que é teu filho, eu te conjuro: concede às piedosas preces de uma suplicante ansiosa, a doçura de poder dar um abraço às irmãs, e com a alegria, devolve a vida à tua Psiquê, que não existe senão para ti. De teu rosto, de hoje em diante, não quero mais saber. As próprias trevas da noite não têm mais sombra para mim: eu tenho a ti, que és minha luz."
"Enfeitiçado por estas palavras, e pelos ternos amplexos (abraços), ele enxugou as lágrimas de Psiquê com os cabelos, e prometeu-lhe fazer o que ela pedia. Depois, apressou-se a se desvanecer na luz do dia nascente.
XIV."As duas irmãs, dupla fraterna conjugada e ligada,  sem mesmo visitar os pais, foram, velozes, diretamente do navio ao rochedo e, na sua precipitação, lançaram-se no vazio com louca temeridade, sem esperar a presença do seu portador, o vento. Zéfiro, fiel às ordens do seu senhor, recebeu-as, um  tanto contra a vontade, no seio das auras, e as depositou no solo. Elas, sem perder um momento, entraram na casa com apressado passo, abraçaram a presa, da qual, por falsidade, se diziam irmãs, e cobrindo com uma expressão sorridente o tesouro de perfídia que se lhes escondia no fundo  do coração,  adularam-na com frases lisonjeiras: "Não és mais a menina de  outrora, Psiquê; agora, por tua vez, és mãe. Que julgas nos trazes na tua sacolinha? De que alegria vais florir nossa casa! Felizes de nós que serviremos de nutrizes a essa maravilhosa criança. Se sua beleza, como é de esperar, corresponder à dos pais, será um verdadeiro Cupido êsse que vai nascer."

XV. "Assim, com simulada afeição, insinuaram-se no ânimo da irmã. Apressada, ela lhes ofereceu cadeiras para descansarem da fadiga da viagem, os tépidos vapores de um banho para se refazerem, e conduziu-as ao triclínio, apresentando-lhes o mirífico regalo de iguarias deliciosas e de viandas escolhidas. Deu uma ordem, e retiniram as cítaras; uma outra, e as flautas soaram. Uma outra ainda, os cantos se elevaram em côro. E todas essas suaves melodias encantavam os espíritos dos que as ouviam, sem que ninguém se mostrasse.
"Porém, mesmo tais acentos, tão doces quanto o mel, não adoçavam a malvada iniqüidade das duas celeradas. Pensavam sempre na armadilha concebida por sua malícia. Travaram uma conversa nesse sentido, interrogando a irmã sem parecer fazê-lo, perguntando-lhe quem era o marido, de que família provinha, de que meio saíra. Psiquê, na sua extrema simplicidade, esqueceu o que anteriormente dissera e forjou um novo conto: o marido era de uma província vizinha, disse. Tinha grandes negócios." Era um homem de meia-idade com algumas cãs. Depois, encerrando a conversa, carregou-as novamente de suntuosos presentes e as entregou aos cuidados do seu veículo, o vento.

XVI."Feita a travessia dos ares, pelo sôpro tranquilo de Zéfiro, regressaram às suas casas, dialogando assim: "Que dizer, minha irmã, da monstruosa mendacidade dessa tola? Então o adolescente em flor, cuja barba era apenas uma recente lanugem, agora é um homem de meia-idade, de cabeleira salpicada com reflexos de prata. Como ocorreu em tão curto espaço de tempo essa metamorfose em ancião? A única explicação, minha irmã, é que a malvada inventa mentiras, ou então ignora a aparência do marido. De um modo ou de outro, qualquer que seja a verdade, é preciso desalojá-la quanto antes da sua prosperidade. Se ela não conhece a figura do marido, é que foi seguramente um deus que desposou, e um deus nos promete a sua gravidez. Se ela se inculcar como mãe de uma criança divina, que o céu tal não consinta, eu me enforco. Enquanto esperamos, voltemos para junto de nossos pais, e, em continuação a esta conversa, teçamos alguma astúcia conveniente."

XVII."Assim inflamadas, saudaram os pais, com ar enfadado. Depois de uma noite perturbada pela insônia, pela manhã estavam fora de si. Correram ao rochedo, de lá voaram prontamente até embaixo, graças ao auxílio costumeiro do vento, e, apertando as pálpebras para fazer sair algumas lágrimas, dirigiram à jovem estas palavras cheias de astúcia: "És bem feliz, tu que repousas na ignorância do perigo que te ameaça, na felicidade que te assegura o desconhecimento de tua desgraça. Nós, entretanto, que estamos vigilantes para com os teus interesses, atormentamo-nos cruelmente com os teus infortúnios. Pois soubemos de fonte segura, e não pudemos escondê-lo de ti, associadas que estamos à tua pena e à tua prova, o seguinte: uma horrível serpente, um réptil de tortuosos anéis, com o pescoço estufado de baba sanguinolenta, de um veneno temível, a goela biante e profunda, eis aí o que repousa à noite, furtivamente, a teu lado. Lembra-te do oráculo do deus de Delfos e da besta monstruosa que sua voz profética te assinalava como esposo. Numerosos são os lavradores, caçadores das redondezas, e vizinhos que a viram voltando à noite do pasto próximo, e nadando nas águas do rio que corre mais perto.

XVIII. "Não será por muito tempo, é o que afirmam, que ele diligenciará servir-te. Nem por muito tempo que te nutrirá de substanciosas iguarias, dos manjares mais finos. Mas assim que o fruto que amadurece no teu seio chegar à sua plenitude, tu te tornarás mais aproveitável por tua carne, e ele te devorará. Cabe a ti agora escolher, se queres ouvir tuas irmãs que tremem por tua preciosa existência, entre escapar à morte e viver conosco, sem temer nenhum perigo, ou ter como sepultura as entranhas de uma fera cruel. Se a solidão do campo, habitado por vozes; se o amor clandestino, a repugnante intimidade de noites cheias de perigos, e os abraços de uma serpente venenosa, têm para ti atrativos, nós, pelo menos, irmãs piedosas, cumprimos nosso dever."
"A estas tristes palavras, Psiquê, coitadinha, na simplicidade de sua terna alma ingênua, foi apanhada de surprêsa. Aturdida, fora de si, esqueceu as advertências do marido e suas próprias promessas. Precipitou-se num abismo de calamidades. Trêmula, exangue, lívida, articulava com esfôrço, com voz sumida, palavras entrecortadas. Disse:

XIX. "Caríssimas irmãs, vós não fazeis senão permanecer fiéis, como convém aos deveres da piedade fraternal. E quanto àqueles que vos afirmam essas coisas, não me parecem que inventam. Com efeito, jamais vi o rosto de meu marido, não sei mesmo de onde vem. Somente à noite, e captando apenas o som de sua voz, suporto a aproximação de um esposo cuja condição me escapa e que foge da luz. Sim, dizeis a verdade, é um monstro, e eu tenho todo o direito de pensar como vós. Não cessou de me fazer grande medo, para não tentar vê-lo, e me ameaçou dos piores castigos caso tivesse eu a curiosidade de lhe conhecer os traços. Se podeis agora vir em socorro de vossa irmã em perigo, é o momento. Agir de outra maneira seria destruir, por vossa indiferença presente, o bem do vosso primeiro aviso."
"Encontrando escancaradas as portas da alma franqueada, descoberta, da irmã, as celeradas, sem mais dissimular, nem recorrerem a maquinações furtivas, desembainharam o gládio da impostura e se apoderaram dos tímidos pensamentos da cândida menina.

XX."E assim tornou a outra: "Os laços do sangue afastam de nossos olhos, quando se trata de tua segurança, até a imagem do perigo. Então, depois de muitas e longas reflexões, nós te indicaremos qual o único caminho que conduz à salvação. Toma uma navalha bem afiada, repassa-a na palma da mão, para poli-la e aumentar-lhe o gume, e, sem ser vista, esconde-a no leito, no lugar onde te deitas sempre. Toma uma lâmpada de fácil manejo, cheia de óleo, de clarão bem vivo, e coloca-a debaixo de alguma tampa. Cerca todos esses arranjos de um segredo impenetrável. Quando, arrastando-se na sua marcha ondulante de reptil, ele chegar até aqui e subir ao leito, segundo o seu costume, e estiver estendido; quando, derrubado pelo primeiro sono, ouvires que ressona e, portanto, dorme profundamente, desliza para fora do leito. Descalça, na ponta dos pés, docemente, e a passos miúdos, vai libertar a lâmpada de sua prisão de trevas. Consulta a lucerna para saber qual o instante mais favorável para efetuar o teu glorioso feito. E, sem hesitar mais, levanta o braço direito, e depois, com todas as tuas forças, num vigoroso golpe da arma de dois gumes, corta o nó que liga à nuca a cabeça da serpente maléfica. Nossa assistência não te faltará, de resto. Aguardaremos ansiosas. Logo que, por sua morte, estiveres livre, acorreremos. Levar-te-emos apressadamente, e contigo tudo que tens aqui. Unir-te-emos a uma criatura humana, a um ser humano, por um himeneu digno de teus desejos."

XXI. "Tais palavras atearam um incêndio nas entranhas já ardentes da irmã, que elas se apressaram a abandonar, temendo mesmo encontrar-se nas proximidades quando da trágica aventura. Depositadas, como de costume pelas asas do vento, no cume do rochedo, com uma fuga rápida, escapuliram: subiram para seus navios e desapareceram.
"Entretanto, Psiquê, deixada só, que digo? Só? Ela não estava só; as Fúrias a fustigavam. Agitada pelo desgosto, ela é como o mar de águas em turbilhão. Por firme que seja seu plano, por obstinado que esteja seu ânimo, no momento de executar o crime titubeia ainda, e vacila; sente-se dividida entre emoções contrárias, nela provocadas pela adversidade. Impaciência, indecisão, audácia, inquietação, desconfiança, cólera, e, afinal, no mesmo ser, ela odeia a besta e ama o esposo. Mas a tarde trouxe a noite. Ela precipitou os arranjos para o horrendo crime. O esposo chegou. E depois dos primeiros combates de Vênus, mergulhou num profundo sono.
"Então a Psiquê, débil, por natureza, de corpo e de alma, o fado cruel fortaleceu. Ela foi procurar a lâmpada e apanhou a navalha: a fraqueza do seu sexo se transformara em audácia.

XXII."Mas assim que a oblação da luz revelou, no seu clarão, os segredos do leito, ela viu a mais feroz de todas as feras selvagens, o dulcíssimo, o adorável monstro. Cupido em pessoa, o deus formoso que formosamente repousava. Vendo isso, a própria chama da lâmpada se avivou alegremente, e a navalha amaldiçoou seu corte sacrílego. A Psiquê tal espetáculo espantou e aturdiu. Com o rosto lívido, descomposto, desfalecente e trêmula, deixou-se cair de joelhos e procurou esconder o ferro, mas no seu próprio peito. Isso teria feito se a arma, pelo temor de tal atentado, não lhe tivesse escorregado das mãos. Mas logo, por mais esgotada, por mais lânguida que estivesse, contemplar a beleza do divino rosto restituiu-lhe o ânimo. Viu uma cabeça dourada, uma nobre cabeleira inundada de ambrósia. Sobre um níveo pescoço e faces coradas, erravam cachos, graciosamente enrolados, que caíam uns para a frente, outros para trás, e tão vivo era o seu brilho que fazia vacilar a própria luz da lâmpada. Nas espáduas do deus alado, plumas cintilavam de brancura, como flores orvalhadas, e nas bordas de suas asas, se bem que estivessem em repouso, uma tênue e delicada penugem ondulava, agitada sem cessar por um frêmito caprichoso. O resto de seu corpo era brilhante e liso de tal modo, que Vênus não podia se arrepender de o ter dado à luz. Aos pés do leito estavam pousados o arco, o carcaz e as flechas, armas propícias do poderoso deus.

XXIII."Com ânimo insaciável, Psiquê, na sua curiosidade, quis examinar, manusear. Admirou as armas do marido, tirou uma flecha do carcaz, provou a ponta no polegar, com um dedinho trêmulo, apoiou-a um pouco mais forte, picou-se apenas o bastante para que algumas gotinhas de sangue rosado perolassem a superfície da pele. Foi assim, que, sem saber, Psiquê se tomou ela própria de amor pelo Amor. Então, cada vez mais se consumiu no desejo ardente pelo Autor dos desejos: inclinou-se para ele, arquejante de volúpia, beijou-o avidamente com grandes beijos apaixonados, apesar de temer acordá-lo. Mas, enquanto o coração desfalecente se abandonava irresoluto a essa emoção deliciosa, a lâmpada, fosse por baixa perfídia e malícia ciumenta, fosse por impaciência de tocar também e beijar esse belo corpo, deixou cair de sua mecha acesa uma gota de óleo fervente na espádua direita do deus. Ah! audaciosa e temerária lucerna, vil escrava do amor, como ousaste queimar o próprio dono do fogo? Lembra-te que foi um amante que, para possuir por mais tempo, até a noite, o objeto de seus desejos, te inventou primeiro. O deus, sob a queimadura, saltou, e, quando viu a sua fé traída e maculada, arrancou-se dos beijos e dos abraços de sua infeliz esposa e voou em silêncio.

XXIV. "Porém, Psiquê, no mesmo instante em que ele se elevou, agarrou-lhe com as duas mãos a perna direita. Mísera companheira de ascensão, suspensa ao vôo pelas plagas além das nuvens, obstinou-se em segui-lo. Por fim, com o extremo cansaço, escorregou para o solo.
"O divino amante, vendo-a jacente na terra, não a abandonou. Pousou num cipreste vizinho, e, do alto cimo da árvore, profundamente comovido, dirigiu-lhe estas palavras:
"Eu te confesso, Psiquê singela, esqueci as ordens de Vênus minha mãe, que te queria cativa de imperiosa paixão pelo mais ínfimo dos miseráveis, e condenada a uma abjeta união. Fui eu, pelo contrário, que voei ao teu encontro, para ser o teu amante. Era agir levianamente, eu sei. O ilustre Sagitário ferido com suas próprias flechas. Afinal, fiz de ti minha mulher, para que me tomasses por uma bêsta monstruosa e tua mão cortasse com o ferro uma cabeça onde tu vês olhos que te adoram... Contra isto a que chegamos, não te preveni quanto bastasse. No entanto, quanto ouviste de mim de benévolas advertências! Mas tuas excelentes conselheiras não tardarão a receber de mim o preço de seu pernicioso magistério. Para ti, minha fuga será a única punição." "Terminando estas palavras, voou para o alto e desapareceu.

XXV. "Entrementes, Psiquê, prostrada por terra, seguia com a vista, tão longe quanto podia, o vôo do marido, atormentando a alma com lamentos desesperados. Depois que, levado pelo remígio das plumas, afastou-se o espôso nas alturas do espaço, ela foi-se atirar nas águas do rio mais próximo. Mas o rio indulgente, honrando sem dúvida o deus que inflama até as ondas, e temendo por si próprio, tomou-a depressa num rodamoinho, sem lhe fazer mal algum, e a depôs na margem, na florida relva.
"Nesse momento, por acaso, Pã, o deus rústico, sentara-se no alto e abraçava Eco, deusa das montanhas, ensinando-lhe a repetir algumas árias. Não longe da água, suas cabras retouçavam aqui e ali, pastavam e ruminavam a folhagem ao longo do rio. O deus de pés de bode, vendo Psiquê chorosa e desfeita (de resto, não lhe ignorava a aventura), chamou-a bondosamente e serenou-a com palavras lenientes: "Minha bela menina, não sou senão um camponês e um pastor de rebanhos, mas a idade e a velhice me tornaram rico de experiência. Se minhas conjecturas são justas, — e pessoas bem informadas chamam a isto adivinhação — essa marcha incerta e vacilante, essa extrema palidez, os suspiros contínuos, e, sobretudo, esses olhos rasos de lágrimas, indicam 'que um grande amor é a causa de tua mágoa.Então escuta: não te precipites nem te faças matar de outra qualquer maneira. Não te entristeças. Esquece o desgosto. Venera, antes, por tuas preces a Cupido, o maior dos deuses, e faze por merecer, por meio de ternas homenagens, o favor do adolescente que êle é, voluptuoso e amigo do prazer."

XXVI."Assim falou o deus pastor. Psiquê, por toda resposta, adorou seu salutar poder, e prosseguiu  a caminhada.     Errara  já por algum tempo, quando, ao cair da noite, chegou, sem o saber, por um certo caminho, a uma cidade onde reinava o marido de uma das irmãs. Tendo sabido disso, pediu Psiquê que anunciassem à irmã sua presença. Introduziram-na. Depois dos mútuos amplexos, e saudações recíprocas, aquela perguntou a causa de sua vinda. E assim falou Psiquê: "Lembrai-vos do conselho que me destes? A esse monstro que, sob o nome enganador de marido, passava comigo as noites, vós me convencestes a matá-lo com a navalha de dois gumes, antes que ele engolisse a pobre criança que trago nas entranhas, com sua goela voraz. Aceitei o conselho, mas quando a lâmpada cúmplice me mostrou seu vulto, eis que vejo um espetáculo maravilhoso e verdadeiramente divino: era o próprio filho da Deusa Vênus, Cupido em pessoa, que repousava num sono sereno. À vista do esplêndido espetáculo, fui tomada de perturbação tão deliciosa, e de tal excesso de volúpia, que me quedei imóvel. Mas eis que, por um acidente funesto, a lâmpada espirrou na sua espádua uma gota de óleo fervente. Arrancou-o a dor, bruscamente, do sono, e ele, vendo-me armada com a flama e o ferro, disse: "Como castigo do teu crime abominável, divorcio-me de ti, "toma quanto te pertence" e deixa-me. Eu desposarei tua irmã, — e foi teu nome que êle disse — desposá-la-ei, por confarreácio. Depois, ordenou a Zéfiro que com um sôpro me pusesse para fora dos limites da sua casa."

XXVII."Psiquê não tinha ainda acabado de falar e a outra, sob o aguilhão de uma paixão libidinosa, e agitada pelo estímulo de um maligno ciúme, inventou um conto para enganar o marido, alegou a morte dos pais para sair, embarcou logo num navio, foi direito ao rochedo, e, se bem que soprasse um outro vento, cega de ávida esperança, disse: "Recebe, oh! Cupido, uma esposa digna de ti, e tu, Zéfiro, vem servir à tua senhora." E deu o grande salto no vazio. Mas nem morta pôde chegar aonde queria. Deixando de queda em queda, nas saliências do rochedo, os membros dispersos, teve o que merecia. Suas carnes em frangalhos foram oferecidas como pasto às aves de rapina e às feras. "Igualmente para a segunda, a vindita não tardou. Pois, retomando a errante caminhada, Psiquê chegou a outra cidade onde morava a outra irmã. Também esta se deixou embair pela fraterna astúcia. Na impaciência de suplantar a irmã, com um casamento criminoso, correu para o rochedo, precipitou-se, e morreu da mesma morte.

XXVIII. "Neste ínterim, enquanto Psiquê percorria a terra tôda, à procura de Cupido, ele, na dor do ferimento feito pela lâmpada, estava deitado, gemebundo, no próprio tálamo materno. Então, a ave de plumagem branca, que em vôo rasante aflora a superfície das ondas marinhas, a gaivota, mergulhou veloz no seio profundo do Oceano. Lá estava Vênus, banhando-se e nadando, e dela a gaivota se aproximou. Contou-lhe que seu filho tinha-se queimado, que a ferida era grave e dolorosa, que ele estava de cama em estado gravíssimo, que pelo mundo inteiro corriam rumores e maledicências comprometedoras sobre a família de Vênus. "Queixam-se", a ave falou, "de que desapareceste, ele para seguir uma criatura nas montanhas e tu para mergulhares no mar. E desde então, adeus volúpia, adeus graça, adeus doce alegria. Por toda a parte o desmazelo, a grosseria inculta. Não mais uniões conjugais, nem laços de amizade, nem a afeição dos filhos, mas o enorme e abjeto desregramento, o tédio sórdido em todas as ligações."
"Era assim que a ave indiscreta e tagarela murmurava ao ouvido de Vênus, dilacerando-lhe a honra do filho. A isto, Vênus, irada, exclamou de repente: "Com que então o meu bom filho já tem uma amiga? Dize-me tu, que és serva afetuosa, o nome dessa que desencaminhou o rapaz ingênuo e ainda inocente, se é do povo das Ninfas, do número das Horas ou pertence ao côro das Graças, minhas servas ?"
"A ave loquaz não ficou muda, mas replicou: "Não sei, senhora. Creio, se não me falha a memória, que é chamada Psiquê, essa por quem êle está perdidamente apaixonado."
"Então, indignada, Vênus exclamou, completamente transtornada: "Psiquê! Ela, a usurpadora de meu nome e minha rival em beleza? E êle a ama, verdadeiramente? O velhaquete me tomou por uma alcoviteira, e imaginou que eu lhe mostrei essa môça, para que ele a conhecesse."

XXIX."Esbravejando desta maneira, ela se apressou a  subir à superfície, seguiu direito ao seu rico tálamo de  ouro. Encontrando ali enfermo o filho, como lhe tinham anunciado, ainda na soleira da porta gritou com quanta  fôrça tinha: "Honesta conduta a tua, digna da nossa raça e da tua virtude! Para começar, desdenhaste as ordens de tua mãe e tua soberana, o que é pior! E, em lugar de infligir à minha inimiga os tormentos de um amor ignóbil, tu mesmo, rapazinho, sem respeitar coisa alguma, te uniste a ela, com laços precoces demais, penso que para me impor como nora a minha inimiga. Tu te presumes libertino, corruptor, sujeito odioso; pensas que podes constituir o tronco de uma família, e que eu, pela minha idade, não posso mais conceber? Pois fica sabendo, darei à luz outro filho, muito melhor que tu. Ou antes, para tornar a afronta mais sensível, adotarei um dos meus pequenos escravos domésticos e lhe darei essas asas, essa tocha, e o arco com as flechas, todo o aparelhamento que me pertence e que eu te confiei sabes para que uso. Pois, seguramente, tua herança paterna não contribuiu em nada para êsse equipamento.

XXX."Mas tu fôste malcriado desde pequenino. Tens as unhas afiadas. Quantas vezes destrataste teus irmãos mais velhos, sem o menor respeito! Tua mãe mesmo, sim, eu, digo, tua mãe, tu me desnudas todos os dias, parricida. Bateste-me frequentemente, tu me desprezas, como a uma mulher relaxada, dir-se-ia, sem temor nenhum de teu padrasto, esse grande e valente guerreiro. Afinal, por que não? Não tens por acaso o costume, para atormentar meu coração amante, de lhe fornecer meninas para suas galanterias? Mas eu farei com que te arrependas dessas brincadeiras e sintas o ácido e o amargo, nessas núpcias. Mas, desdenhada como sou, que fazer? Para que lado me virar? Como trazer à razão esta pequena víbora? Poderei pedir socorro à minha inimiga, a Sobriedade, que eu tenho ofendido frequentemente, com a própria luxúria dêste rapaz? Em verdade, faz-me horror falar com essa mulher grosseira e suja. Mas o consolo que nos traz a vingança não é para desdenhar, venha de onde vier. Então é a ela e a ninguém mais que tenho de recorrer para castigar duramente esse malandro, para esvaziar seu carcaz, desarmar suas flechas, despojar seu arco, apagar a flama de sua tocha, e mais, para acabar com ele com remédios heróicos. Não considerarei vingada a minha injúria senão quando ela tiver raspado essa cabeleira que amiúde, com minhas próprias mãos, acariciei e fiz brilhar como o ouro, e roído essas asas que sobre meu seio inundei de néctar."

XXXI. "Com estas palavras saiu, a bile fervendo de cólera, a cólera de Vênus. No mesmo instante se lhe juntaram Ceres e Juno. Vendo-a com o rosto alterado, perguntaram-lhe por que esse zangado franzir de supercílios, e o que velava o brilho de seus belos olhos. "Oh!" disse ela, "viestes muito oportunamente, para dar ao meu coração ardente a satisfação que ele reclama. Não poupeis esforços, eu vos peço, para descobrir e me trazer essa Psiquê fugitiva, que voou não sei para onde. Não ignorais, eu creio, o escândalo de minha casa, nem as proezas daquele que não deve mais ser chamado meu filho."
"Elas, que sabiam o que se passara,  tentaram  acalmar a ira violenta de Vênus: "Que crime, senhora", disseram,   "cometeu teu filho, para que com ânimo inflexível contraries seus prazeres e diligencies com paixão a perda daquela que êle ama? Ora, vamos, será tão grande crime gostar de se divertir com uma bonita môça? Ignoras que é macho e jovem, ou esqueceste a sua idade? Ou é porque ele carrega gentilmente os seus anos que tu o vês sempre como um menino? Mãe tu és, e mulher cordata. Irás sempre espionar suas folias, acusá-lo  de má conduta, reprovar os seus amores e condenar num filho tão formoso as tuas artes e a tua volúpia? A que deus, a que mortal, podes convencer de que tu expandes o desejo entre  todas as criaturas, quando na tua própria casa impões aos Amôres um amargo constrangimento e fechas a oficina, aberta   a todos, do  pecado de amar?"
"Foi assim que, procurando as boas graças de Cupido, por temor de suas flechas, as duas deusas advogaram-lhe a causa, lisonjeando o ausente. Mas Vênus, indignada por ver ridicularizadas as afrontas recebidas por ela, voltou-lhes as costas e, com passo rápido, tomou o caminho do oceano.

LIVRO VI

I."Entrementes, errava Psiquê, prosseguindo em suas indagações noite e dia, e, de alma inquieta, ansiava por lenir a cólera do marido com as carícias de uma esposa, ou pelo menos desarmá-lo com as súplicas de uma escrava. Avistando de longe um templo, no vértice de um escarpado monte: "Quem sabe?", indagou, "se não é lá que habita o meu senhor?" E para lá se dirigiu com passo rápido, estimulada por suas esperanças e desejos, ela que desfalecia já de ininterruptas fadigas. No alto cume, corajosamente escalado, ela se aproximou do altar da divindade. Viu espigas de trigo, amontoadas ou trançadas como coroas, e espigas de cevada. Havia também segadeiras e todas as ferramentas da colheita, mas tudo atirado por ali, jogado com incúria, tal como as teriam deixado, nas horas quentes do verão, as mãos dos trabalhadores. Psiquê as separou com cuidado, pôs cada uma em seu lugar, e as arrumou com ordem, considerando que, em lugar de negligenciar o culto de um deus, deve-se implorar a todos a sua misericórdia benfazeja.

II. "Quando ela se desempenhava dessa tarefa, com solicitude, Ceres nutriz a surpreendeu e teve uma longa exclamação: "Mas, como, mísera Psiquê? No mundo inteiro, Vênus, ansiosa, procura um vestígio teu, te reclama para o extremo suplício e prepara a vingança, usando todo o seu divino poder. E tu, no entanto, zelas os meus interesses e pensas, não na tua salvação, mas em outra coisa?"
"Então, Psiquê se atirou aos seus pés, orvalhou-os com uma torrente de lágrimas, e, varrendo o solo com os cabelos, implorou-lhe a graça, com muitas preces: "Pela tua mão direita, que dispensa os frutos da terra, eu te conjuro; pelos ritos de fertilidade das messes; pelo segrêdo inviolável dos cestos; pela carruagem alada dos dragões teus escravos; pelos sulcos das glebas sicilianas; pelo carro do rapto e pela terra, guardiã avara; pela descida de Prosérpina para as núpcias tenebrosas; pelo volta de tua filha, reencontrada, à luz das tochas; por tudo que cobre de um véu de silêncio o santuário de Elêusis ática, atende à súplica da mísera Psiquê. Consente que eu me esconda entre os montes de espiga, somente por alguns dias, o bastante para deixar à fúria desencadeada da poderosa deusa o tempo de se abrandar, ou, pelo menos, para que minhas forças esgotadas por um longo trabalho, tenham o intervalo necessário a um repouso apaziguante."

III. "Ceres replicou: "Tuas lágrimas, tuas preces me comovem e eu desejo te socorrer. Porém, Vênus é minha parenta colateral, e com ela mantenho velhas relações de amizade. É uma mulher excelente. Não quero provocar-lhe o ressentimento. Sai, pois, depressa desta casa, e dá-te por feliz, se eu não te retenho em custódia."
"Rejeitada, contra tôda a esperança, e duplamente aflita, Psiquê, voltando sôbre os passos, ao atravessar a penumbra de um bosque sagrado, num valado, viu, à sombra dele, um templo construído com arte sábia. Não querendo negligenciar nenhuma oportunidade, mesmo incerta, de sucesso, nem de solicitar o favor de não importa que divindade, aproximou-se da divina entrada. Viu oferendas preciosas e, suspensos aos ramos das árvores e nos portais, tecidos sobre os quais estava inscrito em letras de ouro, com o agradecimento de uma graça, o nome da deusa a quem se faziam tais presentes. Psiquê, ajoelhando-se, cercou com as mãos o altar ainda quente e, depois de ter enxugado as lágrimas, orou:

IV. "Espôsa e irmã do Grande Júpiter, tu que habitas em Samos, que se vangloria, ela somente, de ter sido o teu berço, de ter ouvido teus vagidos, de ter alimentado tua infância. Tu que frequentas as casas felizes da alta Cartago, a que te honra sob o aspecto de uma virgem percorrendo o céu, levada por um leão. Ou ainda que, junto das margens do Inaco, que reconhece em ti a espôsa do Tonante e rainha dos deuses, proteges os feitos ilustres de Argos. Tu que todo o Oriente venera sob o nome de Zígia, e todo o Ocidente sob o de Lucina, sê para mim, em minha extrema desgraça, Juno Auxiliadora. Tu me vês esgotada por tôdas as fadigas que tenho suportado. Livra-me do temor de um perigo ameaçador. Não és tu que vens por ti mesmo, sem chamado, em socorro daquelas que vão dar à luz e estão em perigo?"
"Enquanto ela assim rogava, Juno em pessoa lhe apareceu em toda a augusta majestade de seu augusto poder. "Bem que eu queria", disse, "podes crer, acolher favoravelmente as tuas súplicas. Mas a honra não me permite ir contra a vontade de minha nora Vênus, que eu sempre, estimei como filha. De resto, impede-me também a lei que interdita recolher contra a vontade do dono um escravo fugido."

V."Acabrunhada por êsse nôvo naufrágio da fortuna, Psiquê, não podendo daí em diante procurar o espôso alado, e renunciando a toda e qualquer esperança de salvação, cogitou: "Tentar o que, em minha desgraça, agora? Como procurar outro recurso, quando as próprias deusas, apesar de sua boa vontade, não me podem dar nenhum apoio? Aonde ir se estou prêsa por todos os lados por um cordel? Em que abrigo, em que trevas me esconder, para escapar aos inevitáveis olhos da grande Vênus? Que esperas, então? Arma-te de máscula energia, renuncia corajosamente às ruínas de tuas pobres esperanças, entrega-te voluntariamente à tua soberana e senhora, e procura desarmar com tua submissa modéstia, por tardia que seja, os transportes de sua fúria. E quem sabe mesmo se aquêle que procuras há tanto tempo não encontrarás lá embaixo, em casa da mãe?" Tendo assim tomado o partido de uma obediência arriscada, para não dizer de uma perda certa, meditava como deveria começar as súplicas.

VI."No entanto, Vênus, renunciando a prosseguir suas buscas por meios terrenos, dispôs-se a subir ao Céu. Mandou equipar o carro que Vulcano, o sutil joalheiro, tinha feito para ela, com toda a sua arte, e a ela oferecido como presente de núpcias, antes das primícias do himeneu. Embelezara-o em detrimento do tamanho, e afinando-o com o trabalho da lima, com a própria perda do ouro, tinha-lhe acrescentado valor. Das numerosas pombas que se aninhavam nos beirais da casa da senhora, avançaram quatro, todas brancas, que, com passo gracioso, e curvando o colo nuançado, colocaram-se sob o jugo ornado de pedrarias, receberam a dona e alçaram vôo alegremente. Pardais acompanharam o carro da deusa, com suas lascivas brincadeiras e seu pipilar barulhento, enquanto que outros pássaros de canto harmonioso faziam soar docemente sua melodia suave e anunciavam o advento da deusa. As nuvens se afastaram, o Céu se abriu para a filha, o Éter acolheu com alegria a imortal. Não houve encontro com as águias, nem as aves de rapina apareceram para causar terror ao cortejo canoro da grande Vênus.

VII."Ela se dirigiu diretamente à real fortaleza, morada de Júpiter. Em voz alta, apresentou seu pedido requisitando os serviços de Mercúrio, o deus da voz sonora, para um negócio urgente. Júpiter anuiu, movendo o negro supercílio. Então, Vênus, triunfante, desceu do Céu acompanhada de Mercúrio e começou com ar solícito: "Tu sabes, não é verdade, meu irmão arcadiano, que tua irmã Vênus jamais fêz fôsse o que fôsse sem a assistência de Mercúrio. E tu não podes deixar de saber que, há já algum tempo, procuro em vão uma serva minha que se escondeu. Assim, não me resta outro recurso senão publicar, por teu intermédio, o anúncio de uma recompensa a quem a tiver descoberto. Apressa-te, pois, a te desincumbir da missão que te confio. Dá um sinal, para que sem falta a reconheçam, a fim de que, se alguém, contra a lei, tornar-se culpado de a ocultar, não possa invocar a escusa da ignorância." Ao mesmo tempo estendia-lhe um papel, levando o nome de Psiquê e outras indicações. Depois, voltou para casa.

VIII. "Mercúrio não deixou de obedecer. Percorreu a Terra em todos os sentidos, visitou todas as nações, e assim se desincumbiu da proclamação de que estava encarregado: "Se alguém detiver a fugitiva Psiquê, escrava, filha de rei, serva de Vênus, ou revelar o lugar em que se esconde, que procure Mercúrio, pregoeiro público, atrás das metas de Múrcia, e êsse receberá, como prêmio da denúncia, da própria Vênus, sete doces beijos, mais um doce como mel, com um toque da ponta da língua."
"Este anúncio de Mercúrio, e o desejo de tão grande prêmio, suscitaram logo entre todos os mortais o zêlo. Essa circunstância, mais do que tudo, acabou com as vacilações de Psiquê. Já se aproximava da casa da soberana, quando acorreu ao seu encontro uma serva de Vênus, chamada Consuetude, que logo gritou quanto pôde: "Então, escrava abominável, acabaste compreendendo que tens uma senhora? Ou, com tua temeridade habitual, fingirás também ignorar quantas fadigas sofremos para correr à tua procura? Por felicidade, caíste justamente entre minhas mãos, e estás nas unhas do próprio Orco, pois não esperarás por muito tempo o castigo da tua contumácia."

IX."E arrastando-a brutalmente pelos cabelos, levou-a consigo, sem que ela opusesse a mínima resistência. Quando a viu levada assim prêsa, Vênus deu uma ampla gargalhada, como fazem as pessoas furiosamente iradas; depois, sacudindo a cabeça e coçando a orelha direita, disse: "Afinal, tu te dignaste a vir saudar a sogra? Ou vieste visitar o teu marido, a quem fizeste uma ferida que lhe põe a vida em perigo? Mas fica tranquila. Eu te receberei como se deve receber uma boa nora." E: "Onde estão?", perguntou, "a Inquietação e a Tristeza, minhas servas?" Assim que entraram, Vênus lhes entregou Psiquê, para que a afligissem, e elas obedeceram às ordens da senhora, magoando com muitos tormentos a pobre criança. Apresentaram-na depois à soberana. Então um nôvo frouxo de riso sacudiu a Vênus. "Aí está", disse ela, "para que eu me apiade, ela conta com a sedução do seu túrgido ventre, cujo fruto glorioso deve fazer de mim uma feliz avó. Verdadeiramente feliz, sim, na flor da idade, tratarem-me de avó, e o filho de uma vil escrava passará por neto de Vênus! Mas eu sou tôla. Um filho, eu digo? Não. Os cônjuges são de condição desigual. Demais, um casamento contraído no campo, sem testemunhas, sem o consentimento do pai, não pode ser considerado legítimo. Então este que vai nascer será espúrio, supondo-se que te deixemos levar essa gravidez até o têrmo."

X. "Assim disse, e caindo sôbre ela, despedaçou-lhe as vestes, arrancou-lhe os cabelos, bateu-lhe na cabeça, machucando-a cruelmente. Depois mandou trazer grãos de trigo, de cevada, de milho, de papoula, de ervilha, de lentilha e de fava, tomou grandes, punhados, misturou-os, confundiu-os num monte, depois disse, dirigindo-se a Psique: "Disforme como és, vejo que para ganhar as boas graças de teus amantes contas com teu devotamento ao serviço. Pois bem, eu também quero experimentar se és mesmo diligente. Separa o monte confuso das sementes que aqui estão. Faze a triagem dos grãos e arranja-os em ordem. É preciso que tudo esteja arrumado e expedido até a tarde, e então submeterás o trabalho à minha aprovação."
"Depois de assim ter designado o montão de grãos de várias espécies, Vênus foi a uma festa de casamento. Psiquê nem a mão estendeu para aquela confusão inextricável, mas,   consternada por essa desumanidade,  quedou-se  num silencioso  estupor. Então a formiga, o humilde animalejo dos campos,   medindo as dificuldades da tarefa, teve compaixão da   companheira do grande deus e maldiçoou a crueldade da sogra.  Correndo ativamente de um lado para outro, convocou e reuniu todo o exército das formigas vizinhas: "Piedade, ágeis filhas  da terra, mãe de tôdas as coisas, piedade para uma pobre menina, esposa do Amor, que está em perigo. Acorrei, velozes,   para socorrê-la." Vaga sôbre vaga, desfilou todo o povinho de seis patas,  e,  cada qual mais diligente, tôdas separaram grão por grão, repartiram, agruparam por espécies, depois se apressaram a desaparecer.

XI. "No comêço da noite, Vênus voltou de sua festa nupcial, úmida de vinho, perfumada, enfeitada de grinaldas de rosas, de côres brilhantes. Quando viu pronto o prodigioso trabalho, disse: "Não foste tu, velhaca, não foram tuas mãos que fizeram a tarefa, mas foi sim aquele a quem és cara, para tua desgraça, por tua desgraça e pela sua." E atirando-lhe um pedaço de pão grosseiro, foi-se deitar.
"Entretanto, Cupido, sozinho no fundo da casa, prisioneiro num quarto isolado, estava severamente encerrado, tanto para evitar que seu petulante ardor agravasse e ferida, como para o impedir de se unir ao objeto de seus desejos. Foi assim que, longe um do outro, separados sob um mesmo teto, os dois amantes passaram uma noite desesperada.
"Mas antes que a Aurora subisse ao seu carro, Vênus chamou Psiquê e lhe disse: "Vês êsse bosque que, junto do rio onde suas raízes se banham, se estende ao longo da corrente, e cujas árvores sombreiam a fonte mais próxima? Ovelhas de tosão de ouro pastam ali sem pastor, errando à vontade. Procura agora um floco de lã desse tosão precioso, não importa como, e traze-mo. Eis a minha vontade."

XII.Psiquê pôs-se a caminho, não, em verdade, para executar a ordem recebida, mas para buscar o repouso de suas desventuras, precipitando-se de uma penha ao rio. Mas, do meio da corrente, um verde caniço, origem de sons melodiosos por inspiração divina, ao doce murmúrio da brisa ligeira sussurrou este aviso profético: "Atormentada com tantos trabalhos, Psiquê, não poluas com morte misérrima as minhas águas santas; tenta, porém, aproximar-te das temíveis ovelhas. Quando o sol ardente lhes comunica o seu calor, uma raiva temerosa as galvaniza. Então, com seus acerados cornos, sua testa de pedra, e às vezes com suas mordidas envenenadas, atacam os seres humanos, para matá-los. Mas uma vez diminuído o ardor do sol do meio-dia, o rebanho repousa na serenidade das margens frescas do rio. Daqui até lá, poderás esconder-te sob o altíssimo plátano que bebe onde eu bebo. Desde que se mitigue o furor das ovelhas, e esteja seu ânimo apaziguado, bate as frondes do bosque vizinho. Encontrarás flocos da lã de ouro, que ficam presos nas pontas dos ramos."

XIII."Foi assim que o caniço, humano e simples, ensinou à atormentada Psiquê como salvar-se. Não cometeu ela a falta de deixar de prestar atenção a essas instruções, mas teve, pelo contrário, o cuidado de as seguir cuidadosamente e furtou facilmente o macio tosão de ouro fulvo, tanto quanto bastasse para levar uma boa porção a Vênus. Nem o êxito desta segunda prova foi reconhecido por ela que, franzindo os supercílios, disse, com um sorriso amargo: "Eu não me engano. Sei quem é o autor desta nova astúcia. Mas desta vez eu saberei averiguar se realmente tua alma é corajosa e tua prudência inigualável. Vês tu o cume desta montanha escarpada, dominando o altíssimo rochedo? Lá se encontra uma fonte sombria. É ela a origem do negro curso dágua que, recolhido na bacia escavada no vale vizinho, se transforma nos pantanais do Estige e alimenta as ondas retumbantes do Cocito. Eu quero que, no próprio cimo, onde a fonte jorra das entranhas da terra, apanhes um pouco de sua água gelada e ma tragas sem demora, nesta pequena urna." E assim dizendo, entregou-lhe um vaso talhado em cristal, e acrescentou algumas terríveis ameaças.

XIV."Psiquê, apertando o passo, dirigiu-se para o alto da montanha, para encontrar ali ao menos o fim de uma vida lamentável. Mal chegou às proximidades do cimo, viu a vastidão da emprêsa e suas dificuldades mortais. O rochedo era desmesuradamente alto, íngreme, liso, inacessível. As próprias entranhas da pedra vomitavam águas repugnantes que, escapadas das aberturas inclinadas, resvalavam ao longo da encosta, traçando um caminho por um estreito canal, onde se perdiam e caíam, despercebidas, no vale próximo. À direita e à esquerda das cavidades das rochas, emergiam, arrastando-se sobre o ventre, alongando o pescoço, dragões sanguinários, cujos olhos feitos para a vigília não se fechavam jamais, cujas pupilas velavam, perpetuamente abertas à luz. Além disso, as águas, dotadas de voz, se defendiam a si mesmas. "Afasta-te!" e "Que fazes? Abre os olhos!"; "Que pensas? Vamos!" e "Foge!" e "Morrerás" clamavam sem cessar. Então, ao ver a impossibilidade da tarefa, em lápide se mudou Psiquê, pois seu corpo estava presente, mas os sentidos estavam longe. Literalmente esmagada pelo peso de um perigo inexplicável, não lhe restava nem o supremo consôlo das lágrimas.

XV."Mas as penas da alma inocente não escaparam aos olhos graves da boa Providência. Apareceu, de repente, de asas estendidas, a ave real de Júpiter soberano, a águia rapace. Lembrando-se de que outrora, ministro complacente, havia, sob a direção de Cupido, raptado para Júpiter o escanção frígio, quis, com um auxílio oportuno, obsequiar o poderoso deus nos trabalhos de sua esposa. Abandonou então os radiosos caminhos da abóbada celeste e voou para diante da môça, dirigindo-lhe a palavra: "Ah! Tu, simples como és, e inexperiente nessas coisas, esperas então que dessa fonte, terrível e sagrada, possas furtar algumas gotas, ou pensas que possas mesmo atingi-la? Os próprios deuses, sem excetuar Júpiter, temem as águas estígias, não ouviste contar? E os juramentos que fazes pelo poder dos deuses, fazem os deuses pela majestade do Estige. Porém, dá-me essa ânfora." Apanhou-a, rodeou-a com as garras, e, diligente, balanceou a massa oscilante das asas, estendeu os remígios à direita e à esquerda, passou entre os dragões com seus maxilares de dentes cruéis e as línguas onde vibrava um dardo tríplice. As águas se afastaram, advertindo a águia com ameaças, para que se retirasse sem nada tomar. Ela respondeu que viera por ordem de Vênus, que estava a seu serviço, e essa invenção lhe garantiu acesso um pouco mais fácil.

XVI."Assim, Psiquê recebeu com alegria a urnazinha cheia e se apressou a levá-la a Vênus. Mas mesmo então não pôde satisfazer a implacável deusa, que, ameaçando-a com piores e maiores castigos, apostrofou-a com um riso infernal: "Tu me pareces uma grande feiticeira, e muito versada em malefícios, para ter obedecido a ordens como as minhas. Mas há ainda, minha pequena, um serviço que me deverás prestar. Toma esta caixinha", e entregou-lhe uma, "desce aos infernos, e passa entre os penates do próprio Orco. Lá, apresentarás o cofre a Proserpina e lhe dirás: "Vênus te pede que lhe envies um pouco da tua formosura, apenas a ração de um dia. A que ela possuía, gastou-a completamente em cuidar do filho enfêrmo." Mas não voltes tarde demais. Preciso untar-me com isso antes de ir a um espetáculo no teatro dos deuses."

XVII."Mais do que nunca, sentiu Psiquê que sua fortuna atingia um clímax, e compreendeu que a lançavam abertamente, sem disfarce, à morte. E então? Não a forçavam a ir com seus próprios pés, ela mesma, ao Tártaro, entre os manes? Sem hesitar mais, dirigiu-se a uma alta torre, para se precipitar de lá. Seria, pensava, o caminho mais direto e mais próprio para descer aos infernos. Mas a torre, subitamente, começou a falar: "Por que", perguntou ela, "desgraçada criança, procurar a tua destruição, atirando-te daqui? Para que, nesta derradeira prova e neste derradeiro trabalho, desistires de tudo, sem motivo? Uma vez separado do corpo, o teu espírito, irás sem dúvida, ao fundo do Tártaro. Mas não poderá voltar mais, de maneira nenhuma. Escuta-me:

XVIII."A Lacedemônia, cidade ilustre da Acaia, está situada não longe daqui. Nas suas fronteiras, o Tênaro desliza para lugares afastados. Descobre êsse lugar. Lá se abre uma entrada para a casa de Dite, e pelas portas hiantes se divisa um ínvio caminho. Logo que franqueares a soleira, segue por ele e chegarás diretamente ao palácio de Orco. Mas não vás avançar assim de mãos vazias, através das trevas. Segura em cada uma delas um bolo de farinha de cevada, amassado com vinho e mel, e leva na boca duas moedas. Quando tiveres atrás de ti boa parte da estrada que conduz à casa dos mortos, encontrarás um burro coxo, carregando lenha, e um burriqueiro com o mesmo defeito. Este te pedirá que lhe apanhes alguns cavacos caídos de sua carga. Mas não profiras nenhuma palavra; passa adiante. Logo chegarás ao rio da morte, com seu barqueiro Caronte. Ele exigirá primeiro que lhe deixes o direito de passagem. É com esta condição que, na sua barca de couro costurado, ele transporta os viajantes para a margem oposta. Vê, pois, que mesmo entre os mortos impera a avareza, e um deus como Caronte, preposto de Dite, não faz nada de graça. O pobre, quando morre, deve-se munir do viático, e, se lhe acontece não ter o dinheiro na mão, não lhe permitirão dar o último suspiro. A esse velho esquálido, darás, a título de estipêndio, uma das peças que levares, porém de maneira que ele a tome de tua boca, com sua própria mão. E não é tudo. Durante a travessia da água preguiçosa, um ancião morto, boiando à superfície, levantará para ti as mãos podres, e te suplicará que o puxes para o barco. Mas não te deixes arrastar por uma piedade que te é proibida.

XIX."Quando tiveres atravessado o rio e caminhado um pouco, velhas tecelãs, tecendo um pano, te pedirão para lhes dares um auxílio. Não toques no seu trabalho, não tens direito. Isto será uma das muitas armadilhas engenhadas por Vênus, para te fazer largar pelo menos um dos bolos. Não julgues fútil a recomendação a respeito de cevada, nem que o prejuízo seja leve. Se perderes um deles, acabou-se para ti a luz do dia. Pois um cão gigantesco, de três enormes cabeças — monstruoso e formidável animal que, contra os mortos a quem já não pode fazer nenhum mal, lança, do fundo das fauces, latidos como trovões, que os enchem de vão terror —, mantém-se na soleira do sombrio átrio de Proserpina, como sentinela vigilante da casa deserta de Dite. Joga-lhe como presa um dos bolos. Ele amansará. Passando por ele, sem mais dificuldades penetrarás então em casa da própria Proserpina. Ela te receberá graciosamente e com bondade; convidar-te-á para sentares numa poltrona macia, e para tomares um opíparo repasto. Mas tu, senta-te no chão, pede um pão grosseiro. Depois de comer, dize-lhe o que te leva e toma o que te for apresentado. Na volta, apazigua o cão furioso com o bolo que te restar. Darás em seguida ao avaro barqueiro a moeda que tiveres reservado, e, uma vez atravessado o rio, calcarás o vestígio dos teus primeiros passos e voltarás a ver enfim nosso céu, e ouvirás os coros siderais. Porém, de tôdas as minhas recomendações, a mais importante é esta: não tentes abrir a caixa que trouxeres, nem examines seu interior. Em suma, guarda-te de qualquer movimento de curiosidade, a respeito do divino tesouro de beleza que êle encerra."

XX."E assim a tôrre, que via longe, fêz o seu vaticínio. Psiquê foi sem demora para o Tênaro. Devidamente munida das moedas, assim como dos bolos, desceu rapidamente o corredor infernal, passou sem nada dizer pelo almocreve manquitola, deu ao barqueiro uma peça como portagem, permaneceu insensível ao pedido do morto que flutuava na superfície das águas, desdenhou os pedidos insidiosos das tecelãs, acomodou a raiva terrível do cão, atirando-lhe o bolo para comer, e penetrou, afinal, na casa de Proserpina. Sem aceitar nem cadeira macia nem iguarias requintadas, que lhe oferecia a anfitriã, sentou-se a seus pés, no chão, e, contente com um pão grosseiro, expôs a missão de que a encarregara Vênus. Em segredo, encheram a caixinha, fecharam-na, e Psiquê a recebeu. Com o auxílio do segundo bolo, ela enganou o cão e silenciou a besta que latia, deu em pagamento ao barqueiro a peça que lhe restava, e, com passo bem mais ligeiro, saiu dos infernos. Mas assim que, reencontrando-o, adorou o branco luzeiro do mundo, apesar da pressa que tinha de chegar ao fim da prova, uma curiosidade temerária se lhe apoderou do espírito. "Então, sou tão bôba que vá levar a beleza divina, sem tirar nem um poucochinho para mim e agradar assim, quem sabe, o meu formoso amante?"

XXI. "Ainda falando, abriu a caixa. Mas naquele cofre não havia nada. De beleza nem sinal. Nada senão um sono infernal, um verdadeiro sono do Estige, que, libertado de sua caixa, a tomou toda, infundindo em todos os seus membros uma espêssa letargia, e estendendo-a, em colapso, no caminho, no próprio lugar onde pousara o pé. Ei-la, pois, jacente, imóvel, como um cadáver adormecido.
"Mas Cupido, com seu ferimento já cicatrizado, convalescia. Como não podia suportar a longa ausência de Psiquê, escapara pela alta janela do quarto onde o tinham encerrado. Revigoraram-se-lhe as asas durante o tempo de repouso. Com um vôo mais rápido que nunca, reuniu-se à sua Psiquê, afastou com cuidado o sono, fechou-o de novo dentro de caixa, no lugar que ali ocupava. Depois, despertando Psiquê com a inofensiva picada de uma de suas flechas, disse-lhe: "És vítima uma vez mais, desgraçada criança, da curiosidade que já te perdeu. Agora vai, acaba a missão de que te encarregou minha mãe. O resto compete a mim." Com estas palavras, o amante alado retomou o vôo e Psiquê se apressou a levar a Vênus o presente de Proserpina.

XXII."Entrementes, Cupido, devorado por um excesso de amor, e com a feição dolente, temendo acima de tudo a súbita austeridade da mãe, voltou às antigas atividades. Com rápido vôo, penetrou até o Céu, apresentou sua súplica ao grande Júpiter, e advogou sua causa junto dele. Júpiter, então, tomando-lhe com a mão a face, atraiu-o a si, para beijá-lo e disse-lhe: "Nunca, senhor meu filho, tu me prestaste as honras às quais tenho direito, com o consentimento de todos os deuses. E este peito, onde se dispõem as leis dos elementos e dos movimentos dos astros, tu feres continuamente com teus golpes, e lhe infliges, sem nenhum respeito, a vergonha de fraquezas e aventuras terrenas. Com o desprezo das leis, da própria Lei Júlia, e da moral pública, tu comprometes, nas torpezas do adultério, minha honra e minha reputação, dando aos meus traços augustos forma aviltante de uma serpente de fogo, de um animal selvagem, de uma ave, de qualquer besta. Não me importa. Lembrar-me-ei, de boa vontade, que cresceste entre as minhas mãos. Farei o que me pedes, com a condição, todavia, de que, conhecendo teu dever, fiques de olho aberto contra os teus êmulos, e, se existir atualmente sobre a Terra uma beleza inigualável, que ma ofereças em recompensa do benfício presente. (Zeus tarado)

XXIII. "Deu então ordem a Mercúrio, para convocar depressa todos os deuses em assembléia, proclamando que quem faltasse ao encontro celeste incorreria numa multa de dez mil sestércios. Com esta ameaça, encheu-se logo o anfiteatro do Céu, e Júpiter, dominando os outros do alto do seu elevado trono, assim falou:
"Deuses conscritos, cujos nomes estão no registro das Musas, aqui está um adolescente que criei com as minhas mãos, como vós todos sabeis. Achei que é preciso pôr um freio aos impetuosos ardores de sua primeira juventude. Assim, ele tem dado o que falar, pelo escândalo cotidiano de seus adultérios e tolices de toda espécie. Tiremos-lhe a ocasião e acabemos-lhe com a luxúria de adolescente, encadeando-o com os laços do casamento. Ele escolheu uma moça e tirou-lhe a virgindade. Que a conserve, que a guarde para si, e, unido a Psiquê, possa fruir para sempre do seu amor." Depois, voltando para Vênus a face, disse: "E tu, minha filha, não te entristeças, e que esta aliança com uma mortal não te inspire nenhum temor pela prosápia de tua ilustre casa. Farei com que esse casamento não seja desigual, porém um matrimônio legítimo e conforme com o direito civil." Então, ordenou que Mercúrio fosse procurar Psiquê e a conduzisse ao Céu. Estendendo-lhe um copo de ambrósia: "Toma, Psiquê", disse-lhe, "e sê imortal. Jamais Cupido se desembaraçará dos laços que o ligam a ti. As Vossas núpcias são perpétuas."

XXIV."No mesmo instante, serviu-se um opíparo. No triclínio de honra, acomodava-se o marido, que tinha Psiquê entre os braços. Vinham, depois, Júpiter com sua Juno, e todos os deuses, por ordem de importância. Aí o copo de néctar, que é o vinho dos deuses, foi apresentado a Júpiter pelo jovem rústico seu escanção. Os outros eram servidos por Líber; Vulcano era o cozinheiro, as Horas enfeitavam tudo de rosas e de outras flores, as Graças espargiam perfumes, as Musas cantavam com voz harmoniosa. Depois, Apolo cantou acompanhando-se com a cítara, e Vênus, ritmando os passos com a doce música, dançou formosamente. Formou-se depois uma orquestra onde as Musas cantaram em côro, enquanto um Sátiro tocava flauta e um Panisco soprava a sua flautinha campestre. Foi assim que Psiquê passou, conforme os ritos, para as mãos de Cupido. Chegado o momento, nasceu-lhes uma filha que chamamos Volúpia."

Fonte: Lucio Apuleio, O asno de ouro, Edições de Ouro. Rio de Janeiro: sem data, p. 86 a 122.

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