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Jornalistas rebeldes

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Dentre algumas acepções, a expressão rebelde recebe as seguintes:

No Dicionário Aurélio:
- que se rebela contra a autoridade constituída; insurgente, revoltoso;
- teimoso, obstinado; indisciplinado.

No Dicionário Houaiss:
- que ou quem se rebela ou rebelou; amotinado, revoltoso;
- que ou quem não se submete, não acata ordem ou disciplina; insubordinado;
- que não obedece; teimoso, obstinado, indisciplinado.

É com os significados acima transcritos que temos assistido, diuturnamente, a maioria dos jornalistas brasileiros, de todos os veículos de comunicação, se referirem aos iraquianos que resistem às tropas estrangeiras que invadiram seu país.

arSeriam os resistentes realmente rebeldes, no sentido pejorativo, conotado e denotado das reportagens em que nossos briosos correspondentes (jornalistas), a eles se referem, quase babando de satisfação?

 

O tratamento é dispensado aos iraquianos desde o início da invasão, que foi justificada pela "existência", no Iraque, de armas químicas e biológicas destinadas a extirpar a humanidade. Tais armas não foram encontradas, e, contra todas as expectativas, nem foram plantadas pelos invasores; mesmo assim, os iraquianos, defensores de sua liberdade, continuam sendo tratados como rebeldes.

Nem se diga que a palavra rebelde foi escolhida casualmente ou que não apresenta nenhuma conotação pejorativa. Todos nós, profissionais da área de ciências humanas (jornalistas, juristas, filósofos, historiadores etc), devemos ter muito cuidado com os termos que utilizamos, pois a palavra é nosso instrumento de trabalho. E cada palavra traz consigo um ou vários sentidos, como atestam os dicionários. Por que não se referir aos iraquianos ditos "rebeldes" simplesmente como grupos de resistência?

Chamá-los de rebeldes é atitude que parte de um pressuposto inequívoco: o de que a invasão dos EUA e cia é legítima, mesmo sem autorização da ONU e mesmo sem encontrar as bombas do mundo da fantasia. A imprensa não tem exercido nenhum juízo crítico sobre a situação, preferindo repetir a lição de casa que lhe é repassada pelo governo americano. Está certo que alguns articulistas criticam o unilateralismo e a truculência dos EUA; mas aí vêm os repórteres do mesmo jornal e chamam os iraquianos de rebeldes, desconstruindo tudo o que o(a) responsável articulista fizera. Não fosse a imprensa tão passiva (passividade que quase se confunde com a conivência), questionaria, no mínimo, as seguintes aberrações informativas:

a) Se Saddam Hussein era tão odiado, por que só uma pequena minoria do povo iraquiano recebeu os invasores com festa? Festa que acabou há muito tempo!

b) Se Saddam foi deposto do poder juntamente com seus asseclas, como justificar a resistência que o povo iraquiano vem impondo às tropas invasoras?

c) Como aceitar que um terrorista jordaniano, Abu Musab al-Zarqawi, seja mais poderoso que o exército mais poderoso do mundo?

d) Como o tal Zarqawi comanda um grupo tão numeroso que promove ataques de norte a sul do Iraque no mesmo dia?

e) Como Zarqawi cruza o Iraque de leste a oeste sem ser detido? De manhã está numa cidade ao sul, de tarde já está em outra no norte. Será que ele tem o dom da ubiqüidade?

Saddam não vale um traque, mas o povo iraquiano tem história, se não merecesse respeito pelo só fato de ser originário dos primórdios da civilização, mereceria pela simples grande razão de ser humano.

Justificar o que está ocorrendo no Iraque, como vem justificando a mídia brasileira, é o mesmo que justificar que o proprietário da casa não pode reagir aos ladrões que a invadem na madrugada.

Senhores(as), tenham respeito pela inteligência, não contribuam para formação de pessoas acríticas. São vocês, na era da comunicação, talvez até mais que os pais, que educam as crianças, os adultos de amanhã, cujo juízo crítico os senhores não permitem que desenvolvam – ou melhor, às vezes até lutam para eliminar essa possibilidade.

A situação é ainda mais inquietante na mídia televisiva. A Constituição Federal (art. 223) nos ensina que o serviço de radiodifusão de sons e imagens é de interesse público, só podendo ser explorado por particulares mediante concessão aprovada pelo Congresso Nacional. Como pode uma tal atividade ser desenvolvida para divulgar informações distorcidas, plenas de estereótipos, preconceitos e idéias prontas? Como um serviço de interesse público pode ser usado contra a "autodeterminação dos povos" e contra a "não-intervenção"? Estes são princípios expressamente consagrados pela Constituição (art. 4º, III e IV) para dirigir o Brasil em suas relações internacionais.

Sabemos que a imprensa precisa sobreviver, mas procurem sobreviver com dignidade, pois essa é possível de ser encontrada até dentro de prostíbulos; já disse o promotor de Justiça Roberto Lyra Filho, ao ter sua testemunha – uma prostituta que falava contra um poderoso – contraditada em virtude de sua profissão: "Prostituta sim, mas não prostituída".

Imprensa, imprensa, imprensa, tira o sorriso dos lábios dos apresentadores de telejornais, pois ele é um misto de sarcasmo, subserviência e ignomínia com que desinformam aqueles que pagam para ser informados!

- Será que pagam mesmo?

- É claro que pagam.

- Mas pagam menos do que aqueles que os querem desinformados.

Agora sim, está explicado, mas, insista-se, não justificado.

 

Osório Barbosa
procurador da República e mestre em direito constitucional (PUC-SP)

Carlos Frederico Ramos de Jesus
Servidor do MPF e bacharel em direito (USP)

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