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Tatuagem e serviço público (militar)

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Temos visto e acompanhado, nos últimos dias, algumas batalhas judiciais envolvendo pessoas portadoras de tatuagem que têm sido impedidas (ou se tem tentado impedi-las) de adentrar no serviço público, ao lograrem êxito pela porta estreita dos concursos públicos. Não temos visto tal óbice ser levantado àqueles que adentram pela porta dos cargos de confiança, pois, se assim fosse, o que dizer se o Ministro da Defesa escolhido pelo Presidente da República fosse tatuado?

 

Como o tema ora em comento tem sido versado na seara militar, vamos nos restringir a este serviço público.

 

 

Segundo o Dicionário Houaiss, tatugagem: é a "arte de gravar na pele, por meio de pigmentos coloridos, ícones ger. indeléveis que simbolizam forças da natureza, doutrinas etc. Qualquer marca ou desenho feitos por esse processo. Qualquer vestígio visível e relativamente duradouro; sinal, marca, cicatriz".

 

A pergunta que aqui pretenderemos desenvolver é: a tatuagem é impedimento legítimo ao exercício da função pública militar?

 

Para fins metodológicos, subdividiremos esta em quatro outras: há uma relação necessária entre a existência de marcas no corpo e a eficiência do desempenho da função militar? O desenho da tatuagem, guardados os limites do razoável, sempre implica algum prejuízo à imagem ou aos princípios da Instituição Forças Armadas ou da República Federativa do Brasil? O ato de tatuar-se viola os direitos da personalidade ou os bons costumes? A limitação mediata (mediante a impossibilidade que a tatuagem acarretaria à livre escolha e acesso a cargos públicos) da disposição do próprio corpo e à intimidade é prerrogativa legítima do estado?

 

Passemos à primeira subdivisão da pergunta. No Brasil, entre 1815 e 1967, ou seja, até recentemente, tínhamos o Ministério da "Guerra", depois transformado em Ministério do Exército e, atualmente, Ministério da Defesa. Mesmo se sabendo que o nome não muda a natureza das coisas, a antiga denominação é a que melhor reflete a natureza da Instituição.

 

Se de guerra se está tratando, forçosamente somos levados a concluir que matar e/ou morrer é uma conseqüência natural daquela.

 

Postas estas premissas, as quais acreditamos que aceitas pelo auditório, prosseguiremos reformulando, ao mesmo tempo que restringindo, a pergunta inicialmente formulada: a tatuagem é impeditiva do exercício da função pública militar?

 

Herôdotos , escritor do século V a. C., ao discorrer sobre um valente guerreiro persa de nome Zópiros, relata o seguinte: como as forças de Dario não conseguiam penetrar nas muralhas babilônicas, Zópiros decepou seu próprio nariz e suas orelhas, raspou a cabeça infamemente e se açoitou. Feito isso, procurou os babilônios como desertor, para dizer-lhes que os persas tinham feito aquilo com ele e, por isso, pretendia ajudá-los contra os persas, já que sabia dos planos destes. Foi aceito pelo exército que o acolheu. Depois que sarou de suas chagas, pôs em execução o seu verdadeiro plano. Mandou mensagem aos persas, que se posicionaram como tinham combinado, e abriu as portas da Babilônia para o seus patrícios, que, assim, conquistaram a cidade almejada.

 

As deformidades de Zópiros o impediram de ser um grande guerreiro e, talvez, um dos mais corajosos de que se tem notícia?

 

Analogamente, outro tipo de marca, como a tatuagem, seria passível de interferir no bom desempenho da função de militar?

 

Alguém deixará de tombar, se abatido por um projétil disparado por um militar tatuado?

 

Postos estes questionamentos atinentes à eventual relação entre a existência de tatuagem no corpo do funcionário público e a eficiência do exercício da função militar, passa-se ao enfrentamento de outra problemática: o dito prejuízo que um corpo tatuado traria à imagem da Instituição Forças Armadas.

 

Uma tatuagem que não ofenda o decoro e a moralidade pública ofenderia a República Federativa do Brasil (cuja proteção é a finalidade última das Forças Armadas)? Melhor, alguém com uma tatuagem desse gênero não seria passível de tratamento psiquiátrico?

 

Lembremos, oportunamente, que a tatuagem é maneira corriqueira entre os integrantes da Marinha para gravarem em suas peles, orgulhosamente, os símbolos (particularmente a âncora) da força que integram. Por que deve ou deveria ser óbice à posse em cargo do Exército, por exemplo? O marinheiro Popeye é o símbolo do tatuado e isso não foi invenção espontânea de seu criador, mas mera observação de costumes ancestrais.

 

Chico Buarque, poetando em "Minha História", ao referir-se a um marinheiro, disse:

 

"Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente

E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente".

 

Ainda quanto à Instituição, temos os princípios concernentes às Forças Armadas: Disciplina e Hierarquia. Será que a tatuagem ofende algum deles ou ambos?

 

Um tatuado pode ser disciplinado? Seguramente que sim, pois uma coisa não implica a outra, obviamente.

 

Alerte-se, ainda, que obrigações do militar como barbear-se mais de uma vez ao dia, apresentar-se com a farda não amarrotada e com os sapatos devidamente engraxados não seriam deveres de cunho meramente estético que, portanto, equivaler-se-iam (em legitimidade) à proibição de tatuagens no corpo. São, mais do que isso, deveres cuja observância relaciona-se intimamente com a disciplina que o militar apresentaria no cumprimento de sua função, enquanto a tatuagem não apresenta qualquer relação de implicação com a disciplina que virá a ter o funcionário público. Isso em tempos de paz, quando aquelas primeiras exigência são passíveis de fiscalização. O que se dirá, então, em tempos de guerra (momento em que a finalidade das forças armadas efetivamente se concretizam), em que esse controle se torna inócuo, da proibição da tatuagem?!

 

Um tatuado pode respeitar a hierarquia? A mesma resposta anterior se impõe.

 

Ademais, no caso vertente, podemos visualizar questões de fundo constitucional, mormente, na seara das liberdades públicas.

 

Nesse ponto, destaca-se a limitação pelo Estado ao direito individual de disposição do próprio corpo como mecanismo mediato de obstar o exercício da liberdade de escolha de profissão, especificamente, do acesso a cargos públicos. Vejamos.

 

Em regra, as pessoas têm o direito de disposição sobre o próprio corpo (tanto que, por exemplo, não é crime uma mutilação, uma vez que o princípio da lesividade refere-se sempre a bem jurídico de terceiros). Mais: é proibido ao Estado interferir na esfera de disponibilidade do cidadão sobre o próprio corpo e em seu direito de intimidade, salvo se a disposição se der para fins ilícitos (por exemplo: usar o corpo como meio para o tráfico ilícito de entorpecentes).

 

Ainda que se alegasse a literalidade do artigo 13 do Código Civil de 2002 ("Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física ou contrariar os bons costumes") combinado com o artigo 11 do mesmo diploma legal (segundo o qual a irrenunciabilidade é característica dos direitos da personalidade), o argumento não seria suficiente para barrar o candidato a assunção de cargo público, na fase do exame médico, caso expusesse alguma tatuagem em seu corpo. Por dois motivos: o primeiro é o de que não seria razoável sustentar que um desenho no corpo subsume-se à hipótese de "diminuição permanente da integridade física", e, ainda que assim fosse considerado, haveria uma colisão entre o princípio da integridade (cujo tamanho da ofensa permanente é flagrantemente ínfima com a tatuagem) com os da intimidade e disponibilidade (caso se permitisse ao Estado proibir a tatuagem, nos termos do art. 13 do Código Civil, a regra – liberdades individuais frente à arbitrariedade estatal – tornar-se-ía exceção), implicando necessário sopesamento entre tais normas, cujo resultado seria a desproporcionalidade da eventual prerrogativa do Estado de intervir na esfera da intimidade do indivíduo, para impedi-lo de tatuar-se, seja diretamente (impondo sanção jurídica à conduta de tatuar-se), seja por vias oblíquas (como é o caso de impedir o acesso a cargos públicos pelo motivo de o candidato apresentar marcas no corpo). O segundo motivo é o de que a tatuagem, obviamente ressalvadas as devidas proporções do conteúdo do que se é desenhado, não ofende os bons costumes, como se demonstrará adiante.

 

Tomemos, primeiro, como critério para integração do conceito jurídico indeterminado "bons costumes" o valor do "belo". A pessoa que se submete a uma tatuagem assume a responsabilidade pelo julgamento valorativo do belo versus não-belo, e é de sabença popular que a beleza está na pessoa que vê. Admitir que esse julgamento seja procedido pelo Estado é inverter o procedimento natural e adequado. Quem se tatua é quem deve julgar a arte que produziu em si.

 

Aproximando-se, novamente, do guerreiro Zópiros, será que as mutilações eram passíveis de julgamento estético como as tatuagens?

 

Ainda quanto aos "bons costumes", tomemos o critério da aceitação social reiterada no tempo. Salvo engano, Nelson Rodrigues dizia que no Brasil costuma-se copiar a "penúltima moda européia". Se assim é, H. Hesse, em "Demian", publicado no Brasil em 1967, diz que no Início da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), na "Europa Culta" desse período, a tatuagem era moda!

 

No mesmo sentido, segundo o já citado Herôdotos , ao discorrer sobre os trácios, afirma: "Eles consideravam a tatuagem um sinal de nobreza, e não a ter é um indício do contrário".

 

Lembremo-nos, ainda, dos índios brasileiros caiapós, especialmente do cacique Raoni, os quais têm por costume usar o bodoque, que leva ao alargamento de até 8 centímetros de diâmetro do lábio inferior. Estariam os caiapós, por isso, impedidos de adentrar nas forças armadas? Não são brasileiros como os demais e iguais perante a lei? A mesma pergunta valeria para "as mulheres girafas", se esse costume fosse adotado no Brasil.

 

Ainda quanto à prática social, sabe-se que a tatuagem, como tudo na vida, inclusive os remédios, pode ser utilizada tanto para o bem como para o mal (seja lá o que isso signifique). Assim, mesmo que tenha sido usada como uma "marca" pelos criminosos, que por elas se identificavam, também foi utilizada nos campos de concentração, onde, por elas, as pessoas deixavam de ser tais e se transformavam num simples número! Estes são exemplos de utilização maléfica da tatuagem. Por outro lado, temos notícias de que a tatuagem vem sendo utilizada para reparar danos estéticos, por exemplo, aqueles sofridos por pessoas em acidentes de automóvel, em mulheres que passaram por grandes cirurgias etc, a fim de se ocultarem cicatrizes.

Por fim, sabe-se que, em regra, a responsabilidade (em quaisquer das áreas do direito) exige o nexo causal entre a conduta do indivíduo (com discernimento) e seu resultado.

 

Assim sendo, o que dizer de um pai que tatua um filho ainda menor? Este é obrigado a carregar os prejuízos desse ato praticado por seu pai, passando a maldição até a 5ª geração (Direito Romano)?

 

E uma tatuagem procedida na adolescência, quando o tatuado ainda é incapaz – não tem discernimento para os atos da vida civil –, irá puni-lo para o resto de sua vida? Não esqueçamos que não existe pena perpétua. Ainda mais uma que se submete a um menor de idade!

 

E, ainda, Deus (ou a natureza), quando marca alguém com vitiligo ou mancha (como a da perna da cantora Angélica), estaria interferindo, então, no exercício da função profissional do indivíduo? Estaria excluindo-o do exercício de determinadas funções?

 

Temos por dignidade humana: o atributo decorrente da razão (faculdade pela qual o indivíduo é capaz de autodeterminar-se, ou seja, dar-se os destinos da própria existência), que consiste em ter cada ser humano como fim em si mesmo (não como meio para os fins de outrem), portanto, como insubstituível. A efetivação da dignidade exige que lhe seja garantida a liberdade de autodeterminação segundo a razão e disponibilizado um mínimo existencial viabilizador da plenitude vital.

 

Destarte, a tatuagem não pode ser uma técnica institucionalizada (negativa ou positivamente) pelo Estado, sob pena de se afrontar a dignidade humana, seja por forçar alguém a se submeter ao que não deseja, seja por discriminar a pessoa por um julgamento (fazer a tatuagem) que só compete a ela.

 

Por tudo isso, concluímos: a tatuagem, que sequer chega a impedir os movimentos físicos (menos ainda os mentais), não pode ser óbice à assunção de quaisquer cargos público, o que inclui os militares – pois, em nenhum caso (tatuagem espontânea ou forçada), a marca interfere na eficiência do exercício da função pública, prejudica a imagem da instituição das Forças Armadas ou da República Federativa do Brasil, ofende os bons costumes, nem desonra o portador –, devendo permanecer a disposição do próprio corpo na esfera da intimidade pessoal do tatuado.

 

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