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Civilização Ocidental: Apenas uma Boa Idéia?, por Wilson Luiz Sanvito.

 

O nó do mundo – miniensaios quase científicos, quase filosóficos

 

Wilson Luiz Sanvito

(Atheneu Cultura, São Paulo, 1995)

 

 

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Civilização Ocidental: Apenas uma Boa Idéia?

 

Há algum tempo recolhi, no consultório, o depoimento de um cliente que considero dramático. Viajando de trem pela Suíça, este cidadão, ao desembarcar na estação de uma pequena cidade, sofreu uma entorse do tornozelo, caiu na plataforma e permaneceu imobilizado pela dor durante algum tempo. Os demais passageiros, que desembarcavam, passavam por ele como se passa ao lado de um saco de batatas. Terminado o desembarque, ele ainda permanecia no chão, um' pouco perplexo com os acontecimentos, mas ganhou ânimo ao ver o chefe da estação caminhando em sua direção. Entretanto este, ao se aproximar, exigia em altos brados a sua imediata saída da estação. Seria este um fenômeno isolado e próprio da Suíça, cujos habitantes vivem encerrados em camisas-de-força de normas e regras? Muito mais do que isso. O relato deste episódio, nada edificante; está longe de ser raro e tem muito a ver com a decantada civilização ocidental.

A falta de solidariedade nos países da Europa Ocidental choca a nós, habitantes do Terceiro Mundo, onde predomina o pauperismo e o atraso cultural. Tanto nas sociedades primitivas como nas sociedades dos países subdesenvolvidos observa-se um forte traço de solidariedade. Já as sociedades do conforto material e do refinamento cultural são constituídas por indivíduos egoístas e fechados sobre si mesmos. Parece que o refinamento cultural (ao lado de outras causas) torna o homem um ser encapsulado e, às vezes, até o deterioram do ponto de vista espiritual. Diz-se até de certos filósofos que seu amor pelo gênero humano, em geral, apenas dissimula sua incapacidade para amar quem quer que seja em particular. Enfim, a atitude solidária e a ação de ajuda não estão incorporadas ao repertório comportamental do homem moderno. Este tipo de comportamento envergonha a nossa civilização e cobre de razão o escritor Mark Twain que, num momento de inspiração, afirmou: homem é o único animal que se ruboriza ou que tem necessidade de se ruborizar.

 O nosso Gilberto Amado chegou a dizer: "Se viver não é fácil, conviver é o diabo." Isto significa que o indivíduo é mais ou menos impermeável aos hábitos de convivência e freqüentemente cultiva o auto-isolamento. O máximo que a maioria se permite é viver e deixar viver; em outras palavras, o indivíduo apenas tolera uma coexistência com os seus semelhantes. Coexistir é diferente de conviver e muitas espécies animais praticam uma coexistência melhor do que o Homo sapiens. O homem, ao cultivar o seu instinto de territorialidade e a sua privacidade, tornou-se um ser insensível e passou a encarar o seu semelhante como um intruso e invasor do seu microcosmo. A partir deste patamar surgem desdobra­mentos inevitáveis e cada indivíduo passa a ignorar o seu semelhante até mesmo em situações dramáticas. A insensibilidade das pessoas atingiu tal grau, nos dias de hoje, que certos países criaram um delito (punido por lei) de assistência a pessoa em perigo." Aquele que se recusa (ou se omite) a prestar socorro a alguém em perigo está sujeito a processo judicial. Este tipo de delito, capitulado em código, expressa bem a sociedade patológica de nosso tempo.

J.P. Sartre, numa de suas peças ("Entre Quatro Paredes"), afirma pela Soca de um personagem: "O inferno são os outros." Com esta postulação, ele sacramenta o conflito como parte nuclear do são humano. Nesta peça os personagens, que são apenas três, se agridem o tempo todo e acabam confirmando a tese amadiana: se viver não é fácil, conviver...

 Quais são as causas desta sociedade anônima? O filósofo Georges Gusdorf pondera no seu livro "A Agonia da Nossa Civlização” (Convívio, S. Paulo, 1978): "... os indivíduos que povoam as ruas da megalópole, que se acotovelam nos traansportes coletivos e se empilham nos andares dos edifícios, não apenas unidades estatísticas, sem existência diferenciada, como grãos num saco de café. Reduzido a um mínimo de espaço material, o homem de hoje não se beneficia de uma livre expansão no espaço espiritual. Na civilização de massa, .i massa oprime a pessoa; estes seres indiferenciados que se empilham uns sobre os outros nunca estiveram tão longe uns ,los outros. As grandes sociedades modernas são desertas de humanidade sob o regime do anonimato." A análise de Gusdorf é pertinente, mas embora múltiplas causas possam ,ci, arroladas para explicar o comportamento solipsista do homem (fenômeno da urbanização, sociedade industrial baseada na luta de classes, civilização tecnológica baseada na idolatria da máquina etc.), é inquestionável a importância do fator biológico. A incompetência do homem para amar o seu próximo é visceral e ele precisa se violentar para viver em Sociedade. O homem primitivo é, agindo a maior parte do tempo sem bloqueios e, portanto, de modo natural. Já o homem civilizado precisa exorcizar (com freqüência) o demôio que ele traz dentro de si. Quase sempre, a sua instância instintivo-emocional se choca com a realidade social. Embora o fator sócio-cultural vise proporcionar ao homem normas para a convivência na comunidade, não deixa de ser paradoxal que nas sociedades mais evoluídas esse objetivo não tenha sido plenamente alcançado. A cultura pode (quando muito) conferir ao homem aquela polidez formal, mas se arranhada esta camada superficial, embaixo vamos encontrar o ser insensível e egocêntrico. Este indivíduo culto apenas tenta desempenhar o papel de um ser social. Penso que não é pela via cultural tout court que se poderá resgatar um mundo mais solidário e humano. Evolução cultural nem sempre significa amadurecimento espiritual. A propósito, durante uma entrevista, um jornalista perguntou a Ghandi o que ele achava da civilização ocidental. "Acho que seria uma boa idéia", ele prontamente respondeu. (p. 1-4).